Reuber Albuquerque Brandão; Renata Dias Françoso
Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação, Departamento de Engenharia Florestal, Universidade de Brasília, Brasília, DF
RESUMO
Acidentes escorpiônicos constituem um sério problema de saúde pública no Brasil. Rhopalurus agamemnon é um grande escorpião do bioma Cerrado, muito abundante em diversas localidades do Brasil Central. A espécie utiliza ambientes campestres e savânicos, sendo comum no interior de cupinzeiros. Entretanto, desaparece de locais onde o cerrado é removido. Os acidentes relatados apresentam sintomas de envenenamentos moderados, mas são baseados em identificações discutíveis. Aqui apresentamos o relato de um acidente seguramente causado por esta espécie. Concluímos que os poucos relatos disponíveis não permitem avaliar a gravidade dos acidentes e o eventual risco deste escorpião para a saúde pública.
Palavras-chaves: Rhopalurus agamemnon. Envenenamento. Escorpiões. Cerrado.
ABSTRACT
Accidents caused by scorpions are a serious public health problem in Brazil. Rhopalurus agamemnon is a large scorpion found in the Cerrado (savanna) biome, and it is very abundant in many localities in central Brazil. The species inhabits open savanna environments, and is common inside termite mounds. However, it disappears from places where the native vegetation has been removed. The accidents reported present moderate symptoms of envenoming, but are based on questionable identifications. Here, we present a report on an accident that was certainly caused by Rhopalurus agamemnon. We conclude that the few reports available do not make it possible to evaluate the severity of such accidents and the possible risk to public health from this scorpion.
Key-words: Rhopalurus agamemnon. Envenoming. Scorpions. Cerrado.
INTRODUÇÃO
Os escorpiões estão entre os primeiros animais a conquistarem o ambiente terrestre e apresentam ampla distribuição no mundo, sendo mais abundantes em ambientes áridos ou semiáridos1,2. Com o corpo dividido em três partes (prosoma, mesosoma e metasoma), possuem uma morfologia extremante conservada, bastante peculiar e facilmente identificável, especialmente pelo longo metasoma e pela presença de um par de palpos armados por pinças1-3. O metasoma é formado por cinco segmentos, sendo que a última peça do metasoma é a vesícula de peçonha, em cuja extremidade existe um aguilhão (ou ferrão), que permite ao animal injetar a peçonha1-3.
Apesar dos escorpiões utilizarem a peçonha como mecanismo para imobilizar e matar suas presas (geralmente insetos e aranhas), muitos possuem peçonha potente, capaz de causar morte em humanos, especialmente crianças4 . O rápido incremento de casos de envenenamento grave, no Brasil, demonstra a relevância que o escorpionismo possui para a saúde pública4. Cerca de oito mil casos de acidentes escorpiônicos são relatados, anualmente, no Brasil, onde todas as espécies de interesse médico pertencem à Família Buthidae1. O gênero Tytius engloba as espécies mais perigosas, com expressiva mortalidade de crianças nos acidentes graves relatados causados pela espécie T. serrulatus, talvez a mais perigosa da América do Sul1. No entanto, pouco se sabe sobre acidentes envolvendo espécies de outros gêneros de Buthidae e seu possível impacto na saúde pública1.
Rhopalurus agamemnon (Koch, 1839) é o maior escorpião da família Buthidae no bioma Cerrado, medindo até 110mm de comprimento total. Apresenta coloração marrom-amarelada, com patas amareladas e segmentos terminais do metasoma, quase pretos5 (Figura 1). A espécie ocorre em áreas de cerrado nos Estados de Goiás, Bahia, Piauí, Pernambuco e Tocantins4,5. Pouco se sabe de sua ecologia, mas observações em campo indicam que a espécie é bastante associada a cupinzeiros terrestres, mas também se abriga sob rochas, troncos caídos e casca de árvores. Em algumas localidades do cerrado, é a espécie mais abundante da fauna de escorpiões6 (Tabela 1).
Relatos de acidentes causados por Rhopalurus agamemnon são extremamente escassos. Os únicos relatos, supostamente causados pela espécie, descrevem brevemente dois acidentes na região de Teresina, Piauí7. Os casos relatados referem-se a uma mulher de 54 anos e um homem de 18 anos. A paciente apresentava intensa dor local, agitação, sialorréia, taquicardia, visão embaçada, lacrimejamento, espasmos musculares e hipotensão arterial. O segundo caso apresentava dor local intensa, sialorréia, sonolência e dor irradiada no ombro direito. A identificação de Rhopalurus agamemnon, como o causador dos acidentes relatados, foi baseada em evidências indiretas, como a descrição do animal pelas vítimas e a captura de animais, nas redondezas de suas casas7.
Aqui relatamos um acidente escorpiônico, certamente, causado por Rhopalurus agamemnon. O espécime causador do acidente foi depositado na Coleção de Aracnídeos do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília (DZUB 5434). Devido à escassez de relatos de acidentes com este escorpião e a disparidade dos sintomas observados com as dos dois casos já relatados7, é oportuno apresentar este caso.
RELATO DO CASO
A vítima é um homem saudável de 37 anos. O acidente ocorreu em uma área de cerrado sensu strictu sobre solo arenoso, no município de São Desidério, Bahia, próximo à localidade de Roda Velha (12°47’36″S; 45°56’25″O), em 14 de outubro de 2009. A vítima foi atingida no joelho esquerdo, enquanto trabalhava no campo. A picada foi praticamente indolor. Logo após a picada, o local atingido manifestou intenso prurido. A vítima coçou o local da picada, causando uma pequena ferida. Cerca de 20 minutos após a picada, a vítima sentiu forte formigamento em toda a perna (parestesias). Uma hora após a picada, as parestesias se irradiaram por todo o corpo, sendo mais intensas na língua e nas extremidades. Tremores pouco frequentes foram observados nas mãos, bem como uma leve dessensibilização da língua. Este quadro persistiu por 24 horas e reverteu espontaneamente. Nenhum outro sintoma foi observado, exceto um leve prurido no local atingido, que persistiu por oito dias, desaparecendo com a cicatrização.
DISCUSSÃO
Acidentes escorpiônicos com manifestações locais de dor e parestesias, são considerados envenenamentos leves, que não demandam a aplicação de soros antiescorpiônicos8. O caso aqui relatado é considerado leve, sem manifestação de dor, mas com parestesia persistente no corpo. A ausência de dor intensa é um aspecto interessante deste caso, visto que esta é uma das principais manifestações de outros acidentes escorpiônicos já relatados8,9. Não foram observadas outras manifestações locais ou sistêmicas, como sudorese, vômitos, náuseas ou taquicardia.
As manifestações clínicas relatadas previamente nos casos anteriores (supostamente causadas por Rhopalurus agamemnon) podem ser classificadas como moderadas, tendo sido passíveis de aplicação de soro7.
Como escorpiões possuem morfologia extremamente conservada, é prematuro afirmar com segurança que os escorpiões envolvidos nos casos relatados7 sejam Rhopalurus agamemnon. A identificação de espécies com base em descrições orais, feitas por pessoas não treinadas, é extremante desaconselhável. O fato de indivíduos de R. agamemnon terem sido localizados nas proximidades das moradias dos acidentados, não é garantia que a espécie foi o agente causador dos acidentes. Tal conclusão é temerária, também, pelo fato dos acidentados morarem em ambientes rurais. Como a riqueza local de escorpiões no cerrado pode chegar a cinco espécies10, outras espécies podem ter causado o acidente. Dados sobre abundância e riqueza de escorpiões, para quatro localidades de cerrado, mostram que R. agamemnon não é a mais abundante em diversas áreas, está ausente de algumas e é menos comum que espécies de Tytius em outras áreas (Tabela 1).
Observações próprias sobre a fauna escorpiônica do cerrado, em localidades de Goiás, Bahia e Tocantins, sugerem que Rhopalurus agamemnon não é um bom colonizador de ambientes modificados pelo homem, ficando restrito a fragmentos de vegetação nativa. Desta forma, novos casos com R. agamemnon devem ser avaliados para melhor definir a real gravidade de acidentes causados pela espécie.
AGRADECIMENTOS
À Oikos Pesquisas Aplicadas, pela oportunidade de trabalhar no Oeste da Bahia e sul do Tocantins. Ao Senhor Paulo César Motta, pela confirmação da identificação de Rhopalurus agamemnon.
REFERÊNCIAS
1. Lourenço WR, Eickstedt VRD. Escorpiões de Importância Médica. In: Cardoso JLC, França FOS, Wen FH, Málaque CMS, H Júnior V, editores. Animais peçonhentos no Brasil: Biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. 1ª ed. São Paulo: Savier Editora de Livros Médicos; 2003. p.182-197. [ Links ]
2. Sissom WD. Systematics, Biogeography, and Paleontology. In: Polis GA, editor. The Biology of Scorpions. Stanford: Stanford University Press; 1990. p. 64-160. [ Links ]
3. Polis GA, Sissom WD. Life history. In: Polis GA, editor. The Biology of Scorpions. Stanford: Stanford University Press; 1990. p. 161-223. [ Links ]
4. Ministério da Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de Controle de Escorpiões. Ministério da Saúde. Brasília; 2009. p. 72. [ Links ]
5. Lourenço WR. Scorpions of Brazil. 1ª ed. Paris: Les Éditions de l’If; 2002. p. 307. [ Links ]
6. Brandão RA, Motta PC. Circunstancial evidences for mimicry of scorpions by the neotropical gecko Coleodactylus brachystoma (Squamata, Gekkonidae) in the Cerrados of central Brazil. Phyllomedusa 2005; 4:139-145. [ Links ]
7. Carvalho LS, Santos MPD, Dias SC. Escorpionismo na zona rural de Teresina, Estado do Piauí: relato de casos de envenenamento. Rev Soc Bras Med Trop 2007; 40:491. [ Links ]
8. Cupo P, Azevedo-Marques MM, Hering SE. Escorpionismo. In: Cardoso JLC, França FOS, Wen FH, Málaque CMS, H Júnior V, editores. Animais peçonhentos no Brasil: Biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. 1ª ed. São Paulo: Savier Editora de Livros Médicos; 2003. p. 198-208. [ Links ]
9. Horta FMB, Caldeira AP, Sares JAS. Escorpionismo em crianças e adolescentes: aspectos clínicos e epidemiológicos de pacientes hospitalizados. Rev Soc Bras Med Trop 2007; 40:351-353. [ Links ]
10. Motta PC. Primeiro registro de Bothriurus asper Pocock (Scorpiones: Bothriuridae) no Distrito Federal, Brasil. Rev Bras Zoo 2006; 23:300-301. [ Links ]
Endereço para Correspondência:
Dr. Reuber Albuquerque Brandão
Laboratório de Fauna e Unidades de Conservação/Deptº de Engenharia Florestal/UnB
Campus Universitário Darcy Ribeiro
70910-900 Brasília, DF
e-mail: reuberbrandao@yahoo.com.br
Recebido para publicação em 04/02/2010
Aceito em 28/04/2010