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Resposta virológica sustentada em pacientes com co-infecção pelos genótipos 1 e 2 do vírus da hepatite C, com apenas nove semanas de terapêutica antiviral: relato de caso

Ana Ruth AraújoI,II; José Eduardo LeviIV; Carlos Mauríco de AlmeidaI; Tatiane Amábili de LimaI,III; Laura Patrícia Viana MaiaII,III; Kátia Luz TorresIII; Andréa Monteiro TarragôIII; Flamir VictóriaI; Marilu VictóriaI; Sinésio TalhariI; Adriana MalheiroII,III

IFundação de Medicina Tropical do Amazonas, Manaus, AM IIUniversidade Federal do Amazonas, Manaus, AM IIIFundação de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas, Manaus, AM IVInstituto de Medicina Tropical de São Paulo, São Paulo, SP

DOI: 10.1590/S0037-86822010000500030


RESUMO

Relata-se um paciente do sexo masculino com 67 anos e sorologia positiva para o vírus da hepatite C (HCV). Exames moleculares revelaram a presença do RNA do HCV, com carga viral de 2.000 cópias/mL e genótipos 1 e 2. O tratamento foi com alfapeginterferon-2a, 180mcg/semana e ribavirina, 1.000mg/dia. Na quarta semana de tratamento, a carga viral para o HCV era indetectável. Na nona semana, o paciente apresentou hematêmese, piora do quadro de astenia, inapetência e comprometimento do estado geral, quando o tratamento foi descontinuado. O PCR foi negativo após 6 meses e permaneceu assim após um ano. O paciente encontra-se assintomático.

Palavras-chaves: Vírus da hepatite C. Co-infecção. SRV.


ABSTRACT

A report of a 67 year-old male patient with positive serology for HCV. PCR revealed the presence of HCV RNA, viral load of 2,000 copies/mL and genotypes 1 and 2. The pacient was treated with peginterferon alfa-2a at 180mcg/week and ribavirin at 1,000mg/day. In week four of treatment, HCV viral load was undetectable. In week nine, the patient developed hematemesis, worsening of asthenia, anorexia and impaired general condition, so the treatment was discontinued. The PCR was negative six months and one year after the cessation of treatment. The patient remains asymptomatic.

Key-words: Hepatite C virus. Co-infection. SRV.


 

 

INTRODUÇÃO

A infecção pelo HCV está estimada em mais de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, correspondendo a mais de 3% de toda a população mundial1. É um vírus emergente e constitui significativa causa de morbimortalidade humana2. Desta forma, constitui um grave problema de saúde pública. O objetivo deste trabalho é relatar sobre um paciente atendido na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, com 67 anos de idade, caucasiano, procedente de Manaus, Estado do Amazonas que utilizava glucanergan há 40 anos e negava o uso de álcool ou outras drogas. Não havia histórico de transfusões sanguíneas. Queixava-se de astenia, gosto amargo na boca e gases.

Os exames apresentaram os seguintes resultados (Hto 36,8, Hb 12,4, plaquetas 113.000, leucócitos 3.900, ALT 99, alfa-feto proteína 3,3). A ultrassonografia revelou fígado com aspecto normal. As sorologias confirmatórias revelaram positividade para anti-HCV, sendo negativas para (HBsAg, anti-HBc, anti-HBs). Os exames de biologia molecular revelaram a presença do RNA do HCV, com carga viral de 2.000 cópias/mL e através da análise filogenética, concluiu-se que o paciente apresentava os genótipos 1 e 2. Esta etapa do trabalho foi realizada no Laboratório de virologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMT-SP) sob responsabilidade do Dr. José Eduardo Levi. A extração do RNA das amostras foi realizada a partir de 140µL de soro utilizando-se o Kit QIAamp® viral RNA (Qiagen, Uniscience do Brasil-SP), de acordo com as especificações do fabricante. Para a síntese de DNA complementar (cDNA) foi realizada a reação de transcrição reversa (RT), utilizando-se a enzima transcriptase reversa Moloney Murine Leukemia Vírus (M-MLV) (Invitrogen® Brasil) que utiliza moléculas de RNA fita simples, na presença de Random Hexamers N6 (Random primers) para sintetizar fitas de DNA e a reação foi submetida às condições de termociclagem. Após a obtenção do cDNA, o mesmo foi amplificado pela técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR), utilizando-se a enzima Platinum Taq DNA polimerase (Invitrogen® TM Life Technologies, Carlsbad, CA, USA). Os primers foram desenhados a partir da região conservada 5’NCR do genoma do HCV. O Produto amplificado foi identificado por eletroforese em gel de agarose 1,5% (agarose ultrapureTM – Invitrogen Life Technologies). A amostra do paciente continha RNA do HCV no plasma e foi submetida a nova reação em cadeia da polimerase que gerou um produto amplificado de 308pb ideal para análise dos genótipos do HCV. O sequencimaneto do HCV foi realizado no sequenciador ABI PRISM TM 377 Applied Biosystems Incorporation, Foster City, California, EUA. O alinhamento das sequências foi realizado utilizando-se o software ABI 377-96 collection v. 2.6. A genotipagem foi feita através da edição e alinhamento das sequências das regiões 5’NCR, utilizando o programa Sequence Navigator v.3.4 (Applied Biosystems), em conjunto com as sequências padrão obtidas do GenBank, (acessoonline) no banco de dados do Los Alamos National Laboratory nos Estados Unidos. A carga viral foi determinada por meio da quantificação do RNA viral pela técnica de amplificação de ácidos nucléicos, através do Kit Amplicor HCVTM Test (Roche).

O paciente iniciou o tratamento com alfapeginterferona-2a (40KD), 180mcg/semana, associada a ribavirina, 1.000mg/dia, conforme protocolo do Ministério da Saúde para tratamento do HCV genótipo 1. Na segunda semana, após o início do tratamento, observou-se queda discreta do hematócrito, hemoglobina, plaquetas e leucócitos. A partir da quarta semana de tratamento, o paciente passou a apresentar astenia, anorexia e perda de peso, com queda progressiva do hematócrito, hemoglobina, plaquetas e leucócitos. Na quarta semana de tratamento, a carga viral para o HCV era indetectável (<200 cópias/ml) e valores alterados de ALT= 82UI/l e AST= 73UI/L.

Na nona semana de tratamento, o paciente apresentou hematêmese, piora do quadro de astenia, inapetência e comprometimento do estado geral. Foi internado no Serviço de Pronto Atendimento da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, com quadro de pancitopenia. Na internação, apresentava hemoglobina-3,7 hematócrito-11,8, plaquetas-22.000, leucócitos-1.500, AST-73, ALT-82. O paciente recebeu 4 unidades de concentrado de plaquetas e 4 unidades de concentrado de hemácias. O tratamento preconizado inicialmente (interferon associado à ribavirina) foi descontinuado e fez-se hemograma, bioquímica, nova carga viral e ressonância magnética (RNM).

A carga viral permanecia inferior ao limite de detecção e as enzimas hepáticas estavam normais. A RNM revelou sinais de hepatopatia crônica. A endoscopia digestiva alta revelou presença de dois cordões varicosos de fino calibre em segmento distal, sugerindo quadro de hipertensão portal por doença hepática crônica.

Após seis meses da suspensão do tratamento, o paciente estava assintomático. Os resultados dos novos exames demonstraram: Hto-33,8, Hb-11,6, plaquetas-100.000, TAP-70,7% e ALT-58. O PCR qualitativo, seis meses após a suspensão do tratamento foi negativo e permaneceu assim após um ano. O paciente encontra-se assintomático, com perfil bioquímico dentro dos parâmetros de normalidade.

 

DISCUSSÃO

O HCV é um vírus emergente1 em todo o mundo e constitui significativa causa de morbimortalidade humana2. O HCV é o único representante do gênero Hepacivirus, incluído na família Flaviviridae. É um pequeno vírus, com 30 a 60 nm de diâmetro, e apresentando um genoma de RNA linear, com hélice única e positiva, cuja organização assemelha-se a de outros flavivírus, como o vírus do dengue3.

Até o momento, foram Identificados 6 genótipos de HCV, distintos mas relacionados, além de múltiplos subtipos, por meio de correlações moleculares4: 1a, 1b, 2a, 2b, 3, 4, 5 e 6. A determinação do genótipo relacionado a cada indivíduo é importante por apresentar valor preditivo em termos de resposta à terapia antiviral, com melhor resposta associada aos genótipos 2 e 3 do que ao genótipo 14. Como relatado neste trabalho, observamos que o paciente apresentava infecção por dois diferentes genótipos 1 e 2 do HCV. Este fato explica-se porque como ocorre com todos os RNA-vírus, falta à polimerase do HCV, uma função de leitura de prova (proof-reading function). Isto permite que, no curso de infecção persistente, a replicação viral propensa a erros gere um repertório de variantes virais altamente relacionadas, mas geneticamente distintas, ou quasispécies. Esta variabilidade genética concede ao HCV um notável potencial adaptativo, tendo sido implicado com a evasão e controle da resposta do hospedeiro à infecção e a uma sensibilidade diferencial à terapia com Interferon5. Além disso, trabalhos recentes do nosso grupo demonstraram que o genótipo 1 do HCV é o de maior prevalência no Estado do Amazonas, seguido dos genótipos 2 e 36, podendo sugerir ainda que este paciente tenha tido contato com ambos os genótipos dos vírus.

O tratamento da hepatite C visa deter a progressão da doença hepática pela inibição da replicação viral7. O protocolo terapêutico do Ministério da Saúde preconiza a administração de interferon alfa em associação com a ribavirina, variando o tempo de tratamento de acordo com o genótipo do HCV. Considerando que o genótipo 1 tem sido descrito como o que apresenta pior resposta à terapia, o Ministério da Saúde, preconiza, nestes casos, um tratamento mais prolongado, com interferon peguilado. Desta forma, optou-se por tratar o paciente considerando o genótipo 1.

Tem sido sistematicamente descrita uma correlação entre o genótipo viral e a resposta terapêutica. Dados da literatura indicam que para os genótipos 2 e 3 o IFN-γ em combinação com a ribavirina são eficazes em 80% dos casos. Tempo inferior a 12 semanas de interferongama e ribavirina seria tão eficaz quanto um esquema de 24 semanas8. Estes dados evidenciam que o tratamento pode ser mais ou menos eficaz de acordo com o genótipo viral encontrado, sendo a resposta clínica melhor com os genótipos tipos 2 e 3 quando comparada aos genótipos 1a e 1b, como exposto anteriormente.

Surpreendentemente, após quatro semanas de tratamento, o paciente relatado apresentou carga viral indetectável, sugerindo que o mesmo seria bom respondedor ao tratamento, mesmo apresentando a co-infecção com os genótipos 1 e 2. Estes dados estão de acordo com a literatura. Alguns autores relatam que um percentual de pacientes tratados com intereferon e ribavirina que apresenta resposta virológica na 4ª semana de tratamento, têm maior probabilidade de manter a resposta virológica sustentada (PCR qualitativo negativo após 6 meses de suspensão do tratamento)9. Por outro lado, dados de estudo realizado na China com 40 pacientes com hepatite C crônica, submetidos a terapia com IFN-γ e ribavirina por 48 semanas, tiveram resposta viral sustentada; dentre estes, 28% a 31% apresentavam genótipo 1 e 64% a 66% genótipos 2 ou 310.

Após a 4ª semana, apesar da boa resposta do paciente ao tratamento foram observadas alterações laboratoriais. Houve queda do hematócrino, hemoglobina e quadro de anemia severa, com diminuição de leucócitos e plaquetas, havendo hemorragia digestiva e comprometimento do estado geral do paciente. O tratamento foi descontinuado na nona semana face à pancitopenia e comprometimento do estado geral do paciente.

Todas as manifestações e alterações laboratoriais parecem estar relacionado aos efeitos colaterais ocasionados pelo interferon peguilado, associado a ribavirina. Em 2010, Rumi e cols10, observaram que o tratamento com interferon associado a ribavirina pode causar pancitopenia, anemia grave e hemorragias digestivas. Estes autores sugeriram que este quadro pode estar associado ao tipo de interferon peguilado utilizado e o genótipo do HCV. Sendo que nestas situações é indicado descontinuar o tratamento, até que haja melhora do paciente.

No presente estudo, o tratamento foi eficaz, mesmo sendo descontinuado na nona semana após seu início, uma vez que manteve RVS no controle de 6 e 12 meses após a suspensão do tratamento e até o momento apresenta-se assintomático, com concentrações normais das transaminases. A RNM mostrou fígado de aspecto normal, sugerindo que o tratamento foi eficaz neste paciente, tanto para o genótipo 1, como para o 2.

 

SUPORTE FINÂNCEIRO

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

 

REFERÊNCIAS

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2. Bowen DG, Walker CM. Adaptive immune responses in acute and chornic hepatitis C virus infection. Nature 2005; 436:946-952.         [ Links ]

3. Houghton M, Weiner A, Han J, Kuo G, Choo QL. Molecular biology of the hepatitis C viruses: implications for diagnosis, development and control of viral disease. Hepatol 1991; 14:381-388.         [ Links ]

4. Lauer GM, Walker BD. Hepatitis C virus infection. N Engl J Med 2001; 345:41-52.         [ Links ]

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6. Torres KL, Malhe, Tiro Aateno A, Lima TA, Mia LPV, Pimentel JPD, et al. Hepatitis C vírus in blood donors, Brazil. Emerg Infect Dis 2009; 15:676-678.         [ Links ]

7. Strauss E. Hepatite C. Rev Soc Bras Med Trop 2001; 24:69-82.         [ Links ]

8. Brasil. Programa Nacional de Hepatites Virais (PNHV), 2006. Disponível em: www.saude.gov.br/porta/saude. Acessado em 15 de fevereiro de 2010.         [ Links ]

9. Mangia A, Santoro R, Minerva N, Ricci GL, Carretta V, Persico M, et al. Peginterferon Alfa-2b and Ribavirin for 12 vs. 24 weeks in HCV genotype 2 or 3. N Engl J Med 2005; 352:2609-2617.         [ Links ]

10. Rumi M, Aghemo A, Prati GM, D’Ambrosio R, Donato MF, Soffredini R, et al. Randomized Study of Peginterferon-± 2a Plus Ribavirin Versus Peginterferon-± 2b Plus Ribavirin in Chronic Hepatitis C. Gastroenterology 2010; 138: 108-115.         [ Links ]

 

 

 Endereço para correspondência:
Dra. Adriana Malheiro
HEMOAM
Av. Constantino Nery 4397
69050-002 Manaus, AM
Tel: 55 92 3655-0113
e-mail: malheiroadriana@yahoo.com.br

Recebido para publicação em 08/04/2010
Aceito em 12/05/2010