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Malária grave em Palmas, Estado do Tocantins: relato de caso

Éldi Vendrame PariseI, II

ISecretaria Municipal de Saúde de Palmas, Palmas, TO IICurso de Mestrado em Ciências da Saúde, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, TO

DOI: 10.1590/S0037-86822009000400021


RESUMO

Plasmodium falciparum causa a forma clínica mais grave da malária. Neste estudo, relatamos um caso de malária grave, através do acompanhamento do paciente e das anotações em prontuários médicos encontrados no Hospital Geral de Palmas. Discutimos o desfecho do caso e as complicações provocadas pela infecção, reconhecendo o risco potencial de ocorrência de malária grave em zona não endêmica, em consequência do retardo do tratamento e, a importância de intensificar medidas de vigilância que envolve todos os servidores das unidades de saúde, com ênfase para as áreas receptivas de migrantes oriundos de regiões endêmicas.

Palavras-chaves: Plasmodium falciparum. Complicações. Malária grave. Malária importada.


ABSTRACT

Plasmodium falciparum causes the most severe clinical form of malaria. In this study, we report a severe case of malaria, through following up the patient and from notes in the medical files at the Palmas General Hospital. We discuss the outcome of this case and the complications caused by this infection, recognizing the potential risk of occurrences of severe malaria in not-endemic areas because of the delay in treatment, and the importance of intensifying surveillance measures involving all health unit employees, with emphasis on the reception areas for migrants from endemic regions.

Key-words: Plasmodium falciparum. Complications. Severe malaria. Imported malaria.


 

 

A malária é de longe a doença parasitária de regiões tropicais que mais causa problemas sociais e econômicos no mundo. Em número de mortes só é superada pela Aids6. A infecção é causada por um hematozoário intracelular do gênero Plasmodium e é transmitida ao homem por vetores – mosquitos do gênero Anopheles. As três espécies de Plasmodium que causam a malária humana no Brasil são: Plasmodium falciparum, Plasmodium vivax e Plasmodium malariae, sendo as duas primeiras as mais importantes17Plasmodium vivax é responsável pela forma mais branda da doença, não atinge mais que 1% do total das hemáceas e raramente é mortal, porém, é mais complicada de ser tratada. O Plasmodium falciparum é mais agressivo, multiplica-se mais rapidamente, ataca de 2% a 25% das hemáceas, podendo desenvolver o que se chama de malária cerebral, responsável por cerca de 80% dos casos letais da doença6.

A Organização Mundial de Saúde estima que surgem cerca de 300 a 500 milhões de novos casos a cada ano17, com cerca de 1,5 a 2,7 milhões de óbitos10 13, a maioria causados pelo Plasmodium falciparum4. As crianças, idosos, gestantes, viajantes e pessoas não imunes recém-chegadas a áreas endêmicas fazem parte do grupo de maior risco e podem apresentar manifestações mais graves da doença9. O diagnóstico correto se faz necessário, tanto para identificação inicial da doença como para acompanhamento clínico durante e após o tratamento antimalárico20.

Segundo Dutra, em infecções provocadas por Plasmodium falciparum, se não diagnosticadas precocemente e tratadas adequadamente, podem produzir quadros extremamente graves. A anemia pode ser muito intensa, a função renal pode ser comprometida ou mesmo falir totalmente. A função respiratória pode apresentar sérias deficiências, além de quadros neurológicos, como confusão mental e coma5. Pelo fato da doença provocar grandes distúrbios sistêmicos, a morte pode ser o desenlace em cerca de 1 a 2% dos casos detectados5 16.

No Brasil, a região Amazônica é considerada área endêmica para malária. Apresenta condições socioeconômicas e ambientais que favorecem a proliferação do mosquito Anopheles17. A migração de pessoas para essas áreas endêmicas aumenta o contingente de suscetíveis e o risco de infecções graves, principalmente quando são precárias as condições de moradia e de trabalho15. Os indivíduos que desenvolvem atividades em assentamentos e outras, relacionadas ao desmatamento, exploração mineral, extrativismo vegetal17, bem como abertura de grandes rodovias e construção de hidrelétrica8, estão mais expostos às fontes de infecção e, consequentemente, terá maior possibilidade de adoecerem17. Porém, atualmente, a letalidade é baixa e não chegam a 0,1% do total de enfermos6 18.

O controle da transmissão da malária no município de Palmas, TO foi alcançado a partir de 2006, graças aos esforços da vigilância epidemiológica e ambiental. Nesses três últimos anos foram registrados, respectivamente, 32, 28 e 15 casos, todos importados, provenientes de outros municípios do Tocantins, de outros estados e até de outros Países.

A vigilância epidemiológica está constantemente alerta e conta com a atuação dos agentes de vigilância ambiental e agentes comunitários, os quais foram treinados para detectar precocemente os casos e orientar seu encaminhamento para a unidade de saúde de referência. Porém, pelo fato da ausência da autoctonia e pelo reduzido número de casos recebidos no município, os profissionais de saúde ficam despreocupados com relação à doença, não levando em consideração o potencial explosivo da patologia. Segundo Braga e cols2, neste caso, é grande a possibilidade de ser esquecido, no atendimento médico diário, o diagnóstico diferencial com malária. Sendo assim, torna-se conveniente um alerta para o fato e por isso a importância do relato desse caso.

 

RELATO DE CASO

O paciente FRS, de 26 anos, sexo masculino, operário, natural de Codó, no município do Maranhão é procedente de Angola, África, onde estava trabalhando na construção de uma hidroelétrica. Sem antecedentes de malária, saiu da região de procedência sem ter passado por nenhuma avaliação médica para avaliar seu estado de saúde. Chegou a Palmas no dia 10/01/2008, bem fisicamente, porém, oito dias depois começou a sentir dor de cabeça, febre, calafrios, mialgia e artrose. Atendido na rede de saúde de Palmas, em 20/01, foi feito diagnóstico presuntivo de dengue, tendo em vista os sintomas descritos que se manifestavam há dois dias. Na ocasião foi solicitada sorologia para dengue e recomendado repouso e hidratação. Dia 24/01 retornou à mesma unidade queixando-se de dor lombar, inapetência, vômito há cinco dias, diarréia há quatro dias, de cor escura como borra de café e odor fétido. Verificada pressão arterial 100x70mmHg, pulso de 75ppm e temperatura de 39,5ºC. O paciente relata ter trabalhado em Angola e ter chegado em Palmas há 14 dias.

Considerando-se hipótese diagnóstica de dengue clássica com episódios hemorrágicos, foi realizada prova de laço (resultado negativa), solicitado hemograma completo e administrado ao paciente hidratação com soro fisiológico endovenoso com vitamina C, complexo B, dipirona e buscopan. Teve alta ambulatorial após o término do soro, onde foi recomendado tratamento com metoclopramida comprimido de 12 em 12 horas, hidratação oral, repouso e alimentação saudável de acordo com a aceitação.

No dia 26/01, o paciente retornou na mesma unidade de saúde levando o resultado dos exames. Sob efeito de medicação, estava com pressão arterial de 120x90mmHg, temperatura 36,0ºC e queixava-se de fraqueza, diarréia e vômito. O hemograma relatou baixo número de plaquetas 60.000/µl (normal de 150.000 a 450.000/µl). A hipótese diagnóstica sugere convalescença de dengue e por isso foi administrado soro glicofisiológico endovenoso com complexo B. Após o término da soroterapia, novamente teve alta, sem solicitação de exame parasitológico para malária.

Dia 28/01, quando o enfermeiro de sua área de referência fez visita na residência, observou que o paciente estava prostrado, com taquicardia, sudorese intensa, sangramento ocular (esclera vermelha), dispnéico, taquipnéico, temperatura de 36,2ºC, ictérico, dor abdominal, prova do laço positivo, vômitos, diarréia de cor escura como borra de café com odor fétido e pressão arterial 100x50mmHg. Relata que estava fazendo uso de colírio dexametasona e dipirona comprimido de três em três horas, conforme tinha sido orientado, mas mesmo assim, no dia anterior teve febre de 41ºC. O paciente foi encaminhado às presas para o Hospital de Geral de Palmas (HGP) com histórico de febre há 10 dias.

Admitido no HGP, às 17h01min para internação, o paciente estava orientado e verbalizando, porém, em estado grave, desidratado, com cefaléia, fraqueza geral, taquidispnéico, sangramento ocular e pressão arterial 90x70mmHg. Relata não estar se alimentando, ter sangramento nasal e urina escura parecido com coca-cola. A hipótese diagnóstica sugere hepatite e malária. Às 21h24min os exames complementares indicavam distúrbios de coagulação grave, insuficiência hepática, insuficiência renal grave, uréia 157,0mg/dl (normal: 10 a 50mg/dl), creatinina 4,1mg/dl (normal: 0,7 a 1,5mg/dl), bilirrubina 26mg/dl (normal: 0,30 a 1,20mg/dl), plaquetas 28.000/µl (normal: 150.000 a 400.000/µl de sangue) e gama-glutamil transferase (GGT) 172U/L (normal 2 a 30U/L). A ultrassonografia evidenciou hepatoesplenomegalia, disfunção de alças intestinais e rins com aumento difuso de sua ecogenicidade. O esfregaço de sangue periférico comprovou quatro cruzes (++++) Plasmodium falciparum. Foi instituído, então, tratamento com Coartem (4 comprimidos de 12/12 horas, inicio às 24h do dia 28/01) durante três dias e prescrito quatro bolsas de concentrado de plaquetas (uma bolsa de 6 em 6 horas).

Mantendo hidratação venosa, o paciente agrava, ficando agitado, edemaciado, mucosas pálidas, febre de 40ºC, intensa lombargia e abdômen distendido. O exame parasitológico em 31/01 indicava estar negativo para malária, porém, com queda de salivação, sonolência, picos hipertensivos e roncos pulmonares bilaterais. Encaminhado à Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), passou a fazer uso de ventilação mecânica, hemodiálise, com diagnóstico de insuficiência renal aguda, insuficiência hepática, insuficiência pulmonar e síndrome de angústia respiratória do adulto. Ao rever o caso, o médico plantonista constatou erro na dosagem do Coartem (dois comprimidos a menos nas doses do segundo dia). A equipe médica resolveu abandonar o esquema do Coartem e iniciar tratamento injetável com artemeter intramuscular (3,2mg/kg no 1º dia, mais 1,6mg/kg/dia, durante cinco dias), acompanhado por clindamicina endovenosa (20mg/kg/dia de 8/8 horas) do 1º ao 6º dia, seguido de vancomicina (1g) e imipenen (500mg) endovenoso por mais quatro dias. No dia 1º/02, foram prescritas ao paciente duas bolsas de concentrado de hemáceas e depois, em 06/02, voltaram a ser ministradas novamente (2 unidades/dia durante quatro dias).

Dois dias após o término do tratamento com artemeter (07/02), o paciente passa a ter momentos de febre por 48 horas. A pesquisa para Plasmodium constatou estar negativo para malária, porém, o estado clínico do paciente se agravava a cada dia. Sedado no leito e recebendo respiração mecânica, apresentava pernas inchadas, complicações renais graves, infecção respiratória, mas sem febre. Inesperadamente, em 14/02 a temperatura corpórea volta a se elevar. Diante do quadro de gravidade e após consenso médico, a equipe decide entrar com nova medicação, mesmo que o exame parasitológico indicava ausência de Plasmodiun (artesunato endovenoso 3,2mg/kg como dose de ataque, mais 1,6mg/kg/dia durante 4 dias), acompanhado de meropenen 500mg/dia endovenosa durante 25 dias e 05 comprimidos de mefloquina 250mg, no 5º dia, dose única).

No dia 19/02, o paciente melhorou bastante dentro do quadro que se encontrava. Ainda desorientado e com insuficiência respiratória, demonstra consciência e tolera desmame ventilatório. Seis dias depois, frágil emocionalmente, recebe suporte psicológico. Estava verbalizando, caminhando e bem consciente, apresentava taquicardia e em fase de recuperação da função renal. Em 08/03, o paciente deixa a unidade de tratamento intensivo e fica na unidade de internação, onde passa a ser acompanhado pela clínica médica por mais 10 dias. Foram 37 dias de UTI, dos quais fez hemodiálise, diariamente, durante 30 dias. Durante o tempo que permaneceu internado a unidade hospitalar acompanhou o paciente coletando as lâminas de verificação de cura (LVC). A alta hospitalar se deu em 18/03, onde passou a ser acompanhado pela equipe de saúde da família da sua área. Todas as LVC foram negativas para malária e desde aquele momento, permanece saudável.

Importante destacar que, além dos sofrimentos que a malária provocou ao paciente, se for contado a partir do primeiro dia de inicio dos sintomas e os dias de internação, o mesmo perdeu 60 dias de sua capacidade produtiva. Teve perdas econômicas, por ter ficado sem trabalhar e provocou muitos transtornos à sua família. Custos estes, que não são mencionados e nem contabilizados para um paciente de malária, mas que atingem profundamente os que estão envolvidos.

 

DISCUSSÃO

A malária é considerada um problema global e devastador da saúde humana21. Presente nas regiões tropicais e subtropicais do planeta atinge um número de pessoas jamais conhecido na história7.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 2,4 bilhões de pessoas (40% da população mundial) convive com o risco de contágio14, mantendo-se endêmica em 106 países7, pela presença de vetores do gênero Anopheles18. O Plasmodium falciparum é responsável pela metade dos casos mundiais registrados anualmente e por 95% dos óbitos. O maior foco de transmissão é a África Sub-Sahariana onde ocorrem 90% de todas as mortes7. Os outros 10% ocorrem nos demais países, porém, 2/3 desses se referem apenas ao Brasil, Índia e Sri Lanka13.

Dos casos registrados no Brasil, 99,8% concentram-se na região Amazônica, composta pelos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins18. Apesar de o Tocantins fazer parte da Amazônia Legal, é classificado como região não endêmica para malária. Em Palmas, município do Tocantins, a malária encontra-se sob controle. Foram notificados em média 61 casos anuais entre os anos de 2003 a 2008, com os últimos casos autóctones registrados no ano de 2005 (Tabela 1).

 

 

Os pacientes notificados em Palmas, não costumam apresentar altas parasitemias quando do seu diagnóstico. Na série histórica em estudo, não tivemos outros casos de malária graves e nem tivemos óbitos por malária no município. Do total de casos notificados, 97,8% foram de malária importada e apenas 2,2% de malária autóctone. Sendo, 69% infecções por Plasmodium vivax, 17,8% por Plasmodium falciparum e 13,2% por infecções mistas (Plasmodium falciparum + Plasmodium vivax) 19.

Trampuz e cols referem que a malária grave é quase exclusivamente causada por Plasmodium falciparum21. São infecções graves que implicam em manifestações clínicas e complicações que potencialmente são fatais10. Das quatro espécies que infectam o homem esta espécie é a única forma que afeta o cérebro, e pode fazer isso com tanta velocidade que um jovem pode estar jogando bola pela manhã e morrer pela noite7. A idade e o estado de imunidade afetam significativamente o prognóstico da enfermidade10.

Em regiões onde a endemicidade é elevada, as crianças menores de 5 anos são as que mais sofrem com anemia e malária cerebral. Em jovens e adultos, a malária grave é menos freqüente, devido à aquisição da imunidade parcial. No entanto, em áreas onde a transmissão é baixa, estes sofrem mais de malária cerebral e insuficiência renal aguda13. O paciente em estudo, não teve episódio antecedente de malária e a falta de imunidade pode ter contribuído para a elevada parasitemia (++++ cruzes), seguido por acometimentos cerebrais e insuficiência renal aguda.

Normalmente, o período de incubação da malária varia de 9 a 40 dias após a picada do mosquito infectado20, dependendo do número de parasitos inoculados, da espécie do Plasmodium e da imunidade do hospedeiro17. No entanto, a doença também pode se manifestar meses ou, eventualmente, anos depois da saída de uma área de transmissão20. O ataque agudo se inicia com acessos febris precedidos de calafrios e seguidos de intensa sudorese, repetindo-se a cada intervalo de 48-72 horas, segundo a espécie do Plasmodium10. No caso do Plasmodium falciparum, o período de incubação varia de 8-12 dias e os episódios de febre a cada 48 horas17, como também foi observado no paciente relatado.

Plasmodium falciparum, por ser uma espécie agressiva, invade mais hemáceas que outras espécies6. Após alguns ciclos de reprodução há bilhões de parasitos que caem na corrente sanguínea7 e a infecção se agrava progressivamente. Os glóbulos vermelhos parasitados pelo falciparum sofrem alterações (protuberância) em sua estrutura que os tornam adesivos entre si e ao endotélio microvascular6. Quando essas células modificadas passam pelos capilares cerebrais, elas aderem às superfícies e contribuem para o intumescimento cerebral. A partir daí, a infecção se transforma na fase mais temida da doença – a malária cerebral7, responsável por 80% dos casos letais da doença6.

Miller e cols afirmam que, possivelmente, a citoaderência é um mecanismo induzido pelo Plasmodium falciparum para evitar ser eliminado pelo baço. Este complexo mecanismo desencadeia-se a partir de antígenos variantes do parasito (PfEMP1) e receptores da própria hemácea, além da ativação endotelial, estimulados por mediadores inflamatórios, como o TNF (fator de necrose tumoral). Os principais mediadores endoteliais de ligação são: CD-36 (grupo de diferenciação), ICAM-1 (molécula de adesão intercelular 1) e CSA (sulfato de condroitina A). O resultado final é a obstrução de capilares de órgãos importantes como coração, pulmão, cérebro, fígado, rins, tecidos subcutâneos e a placenta12, podendo gerar problemas cardíacos como trombose e embolias6. Os autores complementam dizendo que, o oxido nítrico (ON) também tem sido proposto como causador da malária cerebral, mas esclarecem que, o coma, manifestação de gravidade, pode ser causado pelo aumento local de oxido nítrico no cérebro e não pelo aumento da sua concentração no sangue12.

Finkel7 explica: as hemáceas têm a função de carregar oxigênio para todas as partes do corpo. Pelo fato de o Plasmodium falciparum ter alta velocidade de multiplicação, ele estimula uma liberação maior de toxina e a destruição de muitas hemáceas é inevitável. Poucas permanecem para sustentar as funções vitais e, com isso, os pulmões lutam para respirar, o coração esforça-se para bombear, o sangue acidifica, as células do cérebro morrem e o paciente passa a sofrer convulsões e finalmente cai em coma. Nesta situação, é difícil de prever sua evolução. Muitas pessoas morrem em poucas horas ou dias. Das que sobrevivem, um número muito elevado permanece com seqüelas neurológicas; lesão esta que não ficou evidenciado no paciente em estudo, uma vez que o mesmo demonstra estar perfeitamente bem.

Para um paciente ser considerado potencialmente grave, deverá apresentam uma ou várias complicações da infecção por malária, independentemente da espécie10. Ferreira refere que a malária causada por Plasmodium falciparum, além dos sintomas correntes como calafrios, febre alta, dor de cabeça, dores musculares, taquicardia, aumento do fígado e do baço, pode ocasionar também, acometimento cerebral com ligeira rigidez na nuca, delírios, desorientação, sonolência ou excitação, convulsões, vômitos, podendo chegar ao coma6. Segundo a Organização Mundial da Saúde, pacientes adultos com malária cerebral apresentam um estado de coma mais ou menos profundo14. Os distúrbios cerebrais podem ocorrer com qualquer grau de redução da consciência ou alterações neurológicas, evoluindo para um quadro de profundas alterações nos reflexos e pupilas contraídas. O tratamento correto e oportuno da malária reduzirá sua duração e evitará a ocorrência de complicações e morte9. A ocorrência de hepatoesplenomegalia, convulsões, hemorragias da retina, anemia grave e dificuldade respiratória são freqüentes. Podem ocorrer complicações como insuficiência renal aguda, porém, geralmente é reversível14. Lacerda11, ao acompanhar seus pacientes, destacou também o aparecimento de petéquias, hipotensão grave, dor abdominal, hiperbilirrubinemia e plaquetopenia. Todas essas complicações com suas sucessivas reversões foram compatíveis com o avanço clínico apresentado pelo paciente deste estudo.

No relato de caso, o quadro clínico apresentado nos primeiros dias de atendimento ambulatorial (temperatura elevada, diarréia, vômitos, cefaléia, mialgia, falta de apetite e petéquias), indicava semelhança com a sintomatologia de algumas arboviroses como: dengue, febre amarela e febre hemorrágica, mas quando associado ao local de procedência era suficiente para suspeitar como caso de malária. Com o passar dos dias o paciente passou a apresentar icterícia, urina turva, insuficiência renal aguda, insuficiência respiratória, sangramento nasal, características de malária grave, além de hepatoesplenomegalia, hemorragia na retina e coma, indicativo de malária cerebral e compatível com sintomas de malária diagnosticada tardiamente. Challer e Lamballerie apud Lacerda11, explicam que, os sintomas clínicos de malária e de dengue são de fato muito semelhantes e o diagnóstico rápido de dengue pode ser falsamente positivo em pacientes com malária. Por isso, solicitar exame de gota espessa é indispensável para esclarecer não apenas o diagnóstico da doença como também para distinguir a espécie da infecção, dado que os tratamentos são distintos.

Com relação à diminuição do número de plaquetas verificado no caso FRS já é reconhecida por Lacerda11, como complicação hematológica da infecção por malária grave. Segundo o autor, os distúrbios de coagulação, estão, de fato, relacionados a este tipo de malária. Uma das prováveis causas dessa ativação da cascata da coagulação é a lesão endotelial que se observa nos quadros graves da doença, além da ativação pró-coagulante de hemáceas infectadas e, possivelmente, dos próprios parasitos.

Entre as duas alterações hematológicas mais frequentes estão a anemia e a plaquetopenia11. A anemia é causada pela combinação de diversos fatores, como, hemólise das hemáceas, depressão da medula óssea e deficiência de ferro13. Por isso, merece maior atenção pelo potencial de letalidade; mas, a plaquetopenia, também é freqüente entre os pacientes de malária e tem se manifestado de forma semelhante entre pacientes graves com alta parasitemia de Plasmodium falciparum e Plasmodium vivax. Sendo assim, é possível que a plaquetopenia grave (plaquetas < 50.000/µl) seja o reflexo de altas parasitemias e está diretamente relacionado ao tempo de doença11, fato que pode ser constatado durante a investigação e comprovado através dos exames parasitológicos do paciente em estudo. Trampuz e cols21 recomendam que, nessas condições, em pacientes graves com anemia e alta parasitemia, a transfusão de sangue pode salvar vidas. Procedimento este, preconizado corretamente pela equipe médica que acompanhou o caso.

Com relação à transfusão de concentrado de plaquetas, não existe uma prescrição definida para malária, uma vez que, até o momento, não está evidente a eficácia de sua transfusão, mesmo naqueles casos em que a contagem de plaquetas é muito baixa. Também, não se pode descartar a possibilidade de que a transfusão de plaquetas possa reduzir a produção de TPO (trombopoietina) e impedir a adequada recuperação de plaquetas através da medula óssea. No entanto, já se tem conhecimento que o tratamento rápido e eficaz, com o uso de antimaláricos esquizonticidas, leva ao aumento imediato das plaquetas11.

Estudos realizados em Manaus/AM demonstram que a velocidade de recuperação das plaquetas é rápida. Em todos os pacientes acompanhados, o número de plaquetas retornou ao seu nível de normalidade logo após a negativação da parasitemia; em seis dias após o início da terapêutica específica. Por isso, parece não haver justificativa para transfusão de plaquetas aos pacientes com plaquetopenia grave, a menos que apresentem algum sangramento ou contagem de plaquetas abaixo de 10.000/µl11. No paciente FRS, de Palmas, a contagem de plaquetas ficou acima desse referencial (registrou 28.000/µl de sangue), no entanto, apresentava sangramento nasal e ocular, fato que pode ter levado a equipe médica optar pela transfusão de plaquetas.

Considerando que a malária grave pode acometer o cérebro em cerca de 2% dos indivíduos não imunes, parasitados por Plasmodium falciparum9, e destes, provoca a morte em cerca de 10% a 50% dos pacientes com tratamento, ela representa uma emergência médica3. As manifestações clínicas que precisam ser abordadas com urgência são: complicações neurológicas, anemia grave, insuficiência renal aguda, edema pulmonar ou síndrome da angústia respiratória do adulto (SARA), hipoglicemia, colapso circulatório, sangramento espontâneo, hemoglobinúria, convulsões repetidas, acidose metabólica e hiperparasitemia13 21. Urina escura é relativamente rara, mas pode estar associada à insuficiência renal aguda. Nesta situação, é bom estar ciente que, a presença concomitante de insuficiência renal aguda ou edema pulmonar com malária cerebral provoca muitas mortes13. O exame laboratorial poderá manifestar elevação da uréia, da creatinina, da bilirrubina e das enzimas séricas14. O prognóstico é bom, desde que diálise esteja disponível13. No paciente em estudo, essas complicações clínicas estavam presentes, mas a gravidade foi contornada. Foram realizadas 30 sessões de hemodiálise, a partir do terceiro dia de internação.

Importante destacar que a contribuição da icterícia para a insuficiência renal aguda é bem conhecida. Pode se apresentar juntamente com malária cerebral e ser confundida como encefalopatia hepática13. Através do exame de gama-glutamil transferase (GGT) é possível detectar o envolvimento hepático na infecção. Estudos realizados por Amaral e cols1, em 30 pacientes de Belém, onde o tempo para estabelecimento do diagnóstico da malária foi em média 13 dias, verificaram que os valores de GGT, geralmente são normais e quando há alteração, este, é bastante discreto. No entanto, esses achados não conferem com os dados do paciente em estudo, onde o resultado do GGT representou quase seis vezes o valor normal (172U/L), no 11º dias após o inicio dos sintomas.

A Organização Mundial de Saúde afirma que a malária grave é conseqüência de infecção por Plasmodium falciparum e, quase sempre, resultado do atraso do diagnóstico e da demora no tratamento14. O Ministério da Saúde complementa, dizendo que, o atraso no diagnóstico e no tratamento tem sido decisivo para aumentar o risco de quadros graves e de óbitos por malária, e, não é infreqüente, que o atraso no tratamento se deve a erro de diagnóstico15.

No presente estudo de caso, o diagnóstico de malária foi confirmado onze dias após e início dos sintomas, com quatro cruzes de Plasmodium falciparum e várias complicações. O acometimento cerebral, no entanto, foi tipicamente relacionado à espécie do Plasmodium e a demora do diagnóstico, os quais foram decisivos para o quadro de gravidade que o paciente enfrentou.

Conforme já constatado pelos programas de saúde, um dos fatores que contribui para a demora do diagnóstico é a insuficiência de recursos humanos capacitados no diagnóstico e tratamento da malária15. No caso de Palmas, os profissionais tinham passado por uma sensibilização no corrente ano, inclusive sobre a introdução do Coartem para tratamento de malária falciparum. No entanto, o fato de o município apresentar baixa freqüência de casos contribui para que os técnicos fiquem pouco atentos aos sintomas da malária e a procedência do paciente – indicador essencial para diferenciá-la das demais doenças. Considerando a atividade desempenhada pelo paciente nos quinze dias anteriores ao início dos primeiros sintomas (construção de barragem) e sabendo-se que teria vindo de uma região endêmica (Angola), a malária deveria ter sido a primeira doença a ser suspeitada.

Após essa ocorrência de malária grave em Palmas, a vigilância epidemiológica divulgou alerta vigorosa. Foram visitadas todas as unidades de saúde do município proporcionando capacitação em serviço com, palestras sobre malária, simulações de pessoas migrantes como exemplo de investigação e, reforçando, a importância de todos os profissionais (médicos, enfermeiros, técnicos, agentes comunitários e agentes de vigilância ambiental) ficarem atentos quanto aos sintomas e local de procedência de cada indivíduo que se fizer presente na sua área de circulação. Foi orientado o fluxograma de atendimento aos pacientes, solicitado coleta de lâmina para todas as pessoas procedentes de áreas endêmicas que apresentarem qualquer tipo de sintoma, como também fortalecido a informação de que, se a infecção e suas complicações não forem identificadas imediatamente e o paciente não for submetido a um tratamento apropriado a malária pode ser fatal.

Vale ressaltar, que é fundamental relacionar os sintomas de um pacientes febril com uma história de viagem em uma área endêmica para malária, uma vez que, em função das viagens e imigrações de pessoas provenientes dessas regiões, a incidência de casos importados continua freqüente em Palmas. Os médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem devem estar devidamente treinados para detectar precocemente os sinais e sintomas específicos da doença, bem como orientar seus pacientes na prevenção.

Contudo, a importância desse caso reside na dificuldade da doença ser diagnosticada em áreas não endêmicas, por conta de sua raridade, permitindo o avanço clínico até formas graves e incomuns, como o acometimento cerebral. Além disso, precisamos destacar que, a existência do mosquito Anopheles darlingi no município de Palmas, transforma-o numa região susceptível para a disseminação da endemia, se os casos importados não forem detectados e tratados rapidamente.

 

REFERÊNCIAS

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 Endereço para correspondência:
Bióloga Éldi Vendrame Parise
106 Sul, Alameda 14, lote 06
77020-062 Palmas,TO
Tel: 63 3026-2521/3218-5106
e-mail: eldiparise@gmail.com

Recebido para publicação em 19/12/2008
Aceito em 20/07/2009