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Raiva em morcegos Artibeus lituratus em Montes Claros, Estado de Minas Gerais

Nídia Francisca de Figueiredo CarneiroI, II; Antônio Prates CaldeiraIII; Letícia Alves AntunesIV; Vinícius Figueiredo CarneiroV; Gustavo Figueiredo CarneiroVI

IDivisão do Centro de Controle de Zoonoses, Prefeitura de Montes Claros, Montes Claros, MG IIDepartamento de Saúde Mental e Saúde Coletiva, Faculdade de Medicina, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, MG IIIDepartamento de Saúde da Mulher e da Criança, Faculdade de Medicina, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, MG IVCurso de Medicina, Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, MG VCurso de Medicina, Faculdade de Medicina de Petrópolis, Petrópolis, RJ VICurso de Medicina, Universidade Presidente Antônio Carlos, Juiz de Fora, MG

DOI: 10.1590/S0037-86822009000400017

RESUMO

Apresentam-se os primeiros isolamentos do vírus da raiva em morcegos frugívoros, espécie Artibeus lituratus em Montes Claros, Minas Gerais. Diagnosticou-se através da reação de imunofluorescência direta, prova biológica e tipificação viral. Embora a raiva canina esteja controlada na cidade, o vírus rábico continua circulante em morcegos na área urbana.

Palavras-chaves: Quiróptero. Saúde pública. Vírus da raiva.


ABSTRACT

The first isolation of the rabies virus in frugivorous bats of the species Artibeus lituratus in Montes Claros, State of Minas Gerais, is presented. The diagnosis was obtained through the direct immunofluorescence reaction, biological tests and viral profiling. Although canine rabies is under control in this city, the rabies virus continues to circulate in bats in the urban area.

Key-words: Chiroptera. Public health. Rabies virus.


 

 

A raiva é uma antropozoonose causada por um vírus da família Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus e que possui sete genótipos; porém, nas Américas, somente o genótipo I (RABV) tem sido identificado como causador da doença até o presente momento3 7. Esse vírus tem predileção pelo sistema nervoso central, causando encefalopatia grave e levando o paciente à morte2 8. A doença acomete os mamíferos, sendo os carnívoros e os quirópteros os principais hospedeiros responsáveis pela transmissão ao homem através da inoculação do vírus contido na saliva infectada, principalmente pela mordedura ou lambedura de pele lesada ou mucosas. Os morcegos, responsáveis pelo ciclo aéreo da doença, têm apresentado grande importância epidemiológica, pois alguns exemplares estão sendo encontrados em grandes centros urbanos2 albergando o vírus nas fezes, urina e glândulas salivares, permitindo sua disseminação via mordedura7 8. Segundo dados do Ministério da Saúde, esses animais já representam cerca de 12% dos casos de transmissão do vírus e desenvolvimento da raiva humana no Brasil8. Desde 1998, no estado de São Paulo, a raiva em cães e gatos tem sido identificada como sendo da variante de morcego hematófago (Desmodus rotundus) e não a variante canina3.

Em países industrializados, a raiva silvestre é a que mais preocupa, pois a urbana encontra-se controlada ou erradicada, o que diminui os riscos para a população humana. No Brasil, o progressivo controle da raiva, particularmente a canina, e a consequente redução da raiva humana por ela transmitida, está colocando cada vez mais em evidência a importância da raiva em morcegos e em outros animais silvestres2.

Na forma clássica, a transmissão do vírus rábico através dos morcegos ocorre por espécies hematófagas, que transmitem a doença prioritariamente para herbívoros e também para humanos2 5. Outras espécies não-hematófagas infectam-se através de diferentes interações com os morcegos hematófagos portadores do vírus rábico, incluindo a disputa de territórios e podem também transmitir acidentalmente a enfermidade, através do contato direto à espécie humana e a outros animais5. Para o Brasil, em geral, os morcegos hematófagos constituem o principal reservatório silvestre do vírus da raiva2, considerados a segunda ordem responsável pela transmissão da raiva humana5 8.

No presente trabalho, são descritos os dois primeiros casos notificados de raiva em morcegos frugívoros da família Phyllostomidae, espécie Artibeus lituratus, no perímetro urbano de Montes Claros, Estado de Minas Gerais, nos meses de janeiro e abril de 2008.

 

RELATO DOS CASOS

Em ambos os casos descritos os animais foram encontrados em área urbana da cidade. O município conta com aproximadamente 350 mil habitantes e possui mais de 95% desse contingente residindo em área urbana. O último caso de raiva humana na cidade foi notificado em 1990 e o de raiva animal canina em 1991, segundo a Divisão do Centro de Controle de Zoonoses (DCCZ).

Caso 1. No dia 15/01/2008, uma moradora do bairro Santa Rita I, região leste do município, encontrou pela manhã um morcego morto dentro da piscina de sua residência, guardando-o em um saco plástico no freezer. Após solicitar o serviço da DCCZ, o animal macho foi devidamente embalado e encaminhado para a Gerência Regional de Saúde (GRS) e depois para a Fundação Ezequiel Dias (FUNED) que, por sua vez, o encaminhou para o Laboratório de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte (LZOON), onde foi submetido a exames laboratoriais de raiva. No inquérito epidemiológico, foram encontrados abrigos de alimentação e um abrigo permanente diurno.

Caso 2. No dia 02/04/2008, um morador do bairro Todos os Santos, região oeste da cidade, encontrou pela manhã um quiróptero morto na garagem de sua casa, local usado como abrigo de alimentação noturno, guardou-o em um saco plástico e imediatamente solicitou os serviços da DCZZ. O animal, de sexo não identificado, foi encaminhado conforme descrito no Caso 1. No inquérito epidemiológico, foram identificados vários abrigos de alimentação na casa vizinha e nenhum abrigo permanente diurno.

As duas amostras que deram entrada no Laboratório de Zoonoses da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte nos dias 12/03 e 11/04/08 respectivamente, foram identificadas de acordo com as características morfológicas e morfométricascomo morcegos frugívoros da família Phyllostomidae, espécie Artibeus lituratus. Inicialmente, seus tecidos cerebrais foram analisados pelo método imunofluorescência direta (RIFD)4, tendo resultados positivos. Posteriormente, amostras cerebrais foram inoculadas em camundongos (prova biológica) segundo a técnica de Koprowskie após seus óbitos, foram submetidos a exame de imunofluorescência direta. Amostras de tecido cerebral dos camundongos foram enviadas ao Instituto Pasteur de São Paulo para tipificação viral. As amostras virais isoladas em ambos os morcegos frugívoros foram definidas como pertencentes à variante 3, compatível com as amostras isoladas de morcegos hematófagos (Desmodus rotundus).

Tabela 1 registra os dados de Vigilância de Quirópteros feita pela DCCZ no período de novembro de 2005 a março de 2008, evidenciando os dois primeiros registros de raiva previamente descritos.

 

 

DISCUSSÃO

O registro de morcegos encontrados em locais não habituais deve ser interpretado como um sinal de alerta, podendo este fato ser considerado como sinal de estado doentio do animal suspeito de raiva8 10. A espécie de quiróptero envolvida em ambos os casos descritos (Artibeus lituratus) é um animal de grande porte, frugívoro mas possui grande habilidade em usar variadas fontes de alimentos como insetos, folhas e néctar, podendo viver em diferentes habitats1 6. Assim, encontra nas cidades, além de abrigo, diversidade e abundância de alimentos. Esta espécie foi a mais encontrada entre os filostomídeos, em estudo realizado em dois parques urbanos do Brasil. A descrição de morcegos positivos para a raiva implica em situações de risco tanto para humanos como para animais e exige medidas de controle dessas espécies e medidas educativas para a população1.

Após a identificação dos casos, a intervenção feita pelos agentes da DCCZ consistiu em sensibilizar e informar a população, utilizando a imprensa local, quanto às formas de prevenção da raiva, transmissão e cuidados ao manipular animais silvestres. Os agentes estimularam a notificação negativa e positiva e realizaram a vacinação dos animais suscetíveis casa a casa, no raio de cento e cinquenta metros. Houve identificação das pessoas que tiveram contato com o animal e administração da profilaxia pós-exposição, apreensão de cães errantes e envio de amostras para análises pertinentes. Nenhuma ação foi adotada para o controle dos morcegos não hematófagos devido à inexistência de metodologia3.

Uma das consequências desastrosas das intervenções do homem no ecossistema têm sido as mudanças de comportamento de animais silvestres, incluindo-se o registro de colônias de morcegos não-hematófagos nas áreas urbanas. Nesses novos ambientes, os morcegos se beneficiaram utilizando a iluminação noturna, os prédios e as plantas como abrigos diurnos e/ou noturnos10. Independente dos seus hábitos alimentares, esses animais podem ser portadores do vírus rábico7, já isolado em diversas espécies de morcegos7 8, o que fortalece a teoria da transmissão da doença entre as diferentes espécies e destaca sua importância na cadeia epidemiológica5.

Outra intervenção humana que pode ter influenciado o desenvolvimento da raiva em morcegos não-hematófagos no município é o uso de inseticidas químicos como métodos de controle de outras endemias. Inseticidas piretróides aplicados em áreas de colônias de morcegos frugívoros e insetívoros podem gerar o estresse, diminuir a resistência desses animais e facilitar o desenvolvimento da raiva naqueles que albergam o vírus rábico10 e devem ser evitados. Nas duas áreas onde foram encontrados os animais, houve aplicações prévias de inseticida piretróide. A área do Caso 1 era classificada em 2007 como de transmissão intensa para a leishmaniose visceral, o que exigiu duas aplicações anuais de inseticida piretróide em todo o bairro e adjacências. No mesmo ano, a área do Caso 2 era classificada como de transmissão esporádica para a enfermidade e somente as casas de pessoas positivas, foram borrifadas. No controle da dengue, foi utilizado piretróide cipermetrina em máquinas Ultra Baixo Volume no período de outubro de 2007 a abril de 2008 nas duas áreas.

Enfim, a presença de morcegos, especialmente não-hematófagos, em áreas urbanas, representa uma consequência de ações desordenadas e inadequadas do próprio homem sobre o meio ambiente e o controle dessa situação representa um desafio aos serviços de zoonose2 10. À medida que a literatura registra casos de morcegos contaminados em múltiplos ambientes urbanos, o controle de tais animais se torna mais uma questão emergente para os serviços de saúde pública1 2 8. Também, fazem-se necessárias campanhas educativas para a população sobre formas de transmissão da raiva, destacando medidas de prevenção e os riscos de manuseio de animais silvestres, especialmente em situações não habituais1 8. Na maioria dos casos de raiva humana transmitida por morcegos não-hematófagos, o contato foi ocasional e a agressão ocorreu por manipulação indevida de morcegos moribundos10.

Concluindo, os autores destacam que, diante da grave notificação ocorrida, ações para o controle da raiva nesse município devem ser revistas e avaliadas, buscando maior envolvimento e conscientização da equipe de trabalho e de toda população.

 

REFERÊNCIAS

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 Endereço para correspondência:
Dra. Nídia Francisca de Figueiredo Carneiro
Centro de Controle de Zoonoses/Prefeitura Municipal de Montes Claros
Av. Antônio Lafetá Rebelo 1371, Bairro Santa Lúcia II
39402-082 Montes Claros, MG
Tel: 55 38 3229-3402; Fax: 55 38 3213-3636
e-mail: nidiaffc@yahoo.com.br

Recebido para publicação em 26/10/2008
Aceito em 30/07/2009