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Hiperinfecção por Strongyloides stercoralis: relato de caso autopsiado

Moema Gonçalves Pinheiro VelosoI; Anita Sperandio PortoI; Mário MoraesII

INúcleo de Citopatologia e Anatomia Patológica, Hospital de Base do Distrito Federal, Brasília, DF IIHospital Universitário de Brasília, Brasília, DF

DOI: 10.1590/S0037-86822008000400018


RESUMO

Infecção assintomática por Strongyloides stercoralis pode resultar em doença potencialmente fatal em pacientes imunodeprimidos. Os autores relatam caso de hiperinfecção por Strongyloides stercoralis descoberto à autópsia, enfatizando aspectos clinicopatológicos, em homem de 55 anos, em tratamento para mieloma múltiplo. Apresentava, havia um dia, cefaléia intensa, dor abdominal e oligúria desenvolvendo insuficiência respiratória aguda e choque séptico. Devido à dificuldade no diagnóstico, o tratamento empírico antes do início da terapia imunossupressora pode ser a melhor estratégia para prevenir a hiperinfecção pelo verme.

Palavras-chaves: Strongyloides stercoralis. Estrongiloidíase. Hiperinfecção. Mieloma múltiplo. Autópsia.


ABSTRACT

Asymptomatic infection due to Strongyloides stercoralis may result in potentially fatal disease in immunodepressed patients. A case of Strongyloides stercoralis hyperinfection discovered at autopsy in a 55-year-old man who had been undergoing treatment for multiple myeloma is reported, emphasizing the clinical and pathological findings. One day earlier, he presented severe headache, abdominal pain and oliguria, from which he developed acute respiratory failure and septic shock. Because of difficulty in reaching this diagnosis, empirical treatment before starting immunosuppressive therapy may be the best strategy for preventing hyperinfection by this worm.

Key-words: Strongyloides stercoralis. Strongyloidiasis. Hyperinfection. Multiple myeloma. Autopsy.


 

 

A estrongiloidíase é uma infecção parasitária intestinal produzida pelo nematódeo Strongyloides stercoralis. Embora predomine em crianças, pode ocorrer em qualquer idade. A maioria dos indivíduos infectados por esse verme tem a doença crônica assintomática, ou oligossintomática, do trato gastrointestinal. Um dos principais problemas para seu controle é a possibilidade de auto-infecção interna e externa, devido à habilidade característica de Strongyloides stercoralis de completar seu ciclo no hospedeiro humano. A auto-infecção pode resultar em infecção persistente por décadas após a exposição original3 4 8 e, em pacientes imunodeprimidos, pode determinar um quadro de alta gravidade, com hiperinfecção acometendo pulmões e trato gastrointestinal ou a disseminação fulminante envolvendo órgãos e tecidos fora do ciclo natural do parasito11, com taxas de casos fatais acima de 70%4 5. Os primeiros relatos de hiperinfecção são de Cruz e colse Rogers e Nelson6, em 1966, que independentemente documentaram a ocorrência de estrongiloidíase fatal associada à diminuição da imunidade celular.

Os autores relatam caso incomum de hiperinfecção por Strongyloides stercoralis, descoberto à autópsia, em paciente submetido a tratamento quimioterápico para mieloma múltiplo.

 

RELATO DO CASO

Quadro clínico. Homem, 55 anos, procedente de Taguatinga-DF, com dor lombar intensa, sem melhora com analgésicos comuns, há dois meses. Apresentava ao exame radiológico e tomografia computadorizada, lesões líticas em sacro e ilíacos, coluna lombar (L3 a L5), com destruição do corpo vertebral de L5 e infiltração do canal vertebral e partes moles adjacentes. Além dessas, havia lesões líticas em diáfise proximal do fêmur direito, colo femoral esquerdo e sétimo arco costal esquerdo, sendo diagnosticado mieloma múltiplo, do tipo IgA/Kappa-estadiamento de Durie-Salmon I-A. Estava em tratamento quimioterápico, protocolo vincristina, adriamicina e dexametasona. Já apresentava melhora do quadro clínico após o terceiro ciclo. No entanto, quatro dias após a realização do quarto ciclo de quimioterapia, procurou atendimento emergencial, com cefaléia intensa, astenia, oligúria e dor abdominal. Somente em um dos hemogramas foi realizada contagem diferencial de células, que revelou eosinofilia de 15%. Ao exame físico, apresentava-se em regular estado geral, desorientado no tempo e espaço, mucosas hipocoradas (3+/4+) e desidratado (2+/4+), com PA 80x 50mmHg, afebril, abdome flácido, pouco doloroso. Foi a óbito na manhã seguinte à internação, com quadro de insuficiência respiratória aguda e choque séptico, sendo solicitada autópsia.

Achados anatomopatológicos. Cadáver do sexo masculino, desnutrido, hipocorado (3+/4+). Corpos vertebrais L4-L5: ausência de neoplasia residual nos corpos vertebrais de L4-L5, que apresentavam áreas de esclerose e de medula óssea com todas as linhagens celulares representadas. Pulmões: apresentavam áreas de hemorragia e congestão intensas, bem como granulomas perivasculares contendo macrófagos e larvas de Strongyloides stercoralis nos septos interlobulares. Também, foram observadas larvas na luz alveolar (Figura 1). Estômago: as alterações da mucosa gástrica consistiam principalmente de erosões esparsas, com hiperplasia foveolar e infiltrado inflamatório linfoplasmocitário, com eosinófilos e neutrófilos dispersos na lâmina própria do antro, notando-se numerosas secções de ovos, larvas e, por vezes, vermes adultos nas fovéolas gástricas. Intestino delgado: a maior intensidade da infecção foi observada no duodeno e jejuno, onde notavam-se erosões, infiltrado inflamatório moderado, semelhante ao presente no estômago, edema e numerosas secções de ovos, larvas e vermes adultos nas glândulas (Figura 2), e por vezes, na luz de vasos sanguíneos e linfáticos da submucosa. Intestino grosso: além de alterações semelhantes às anteriormente descritas, foram observadas pequenas lesões polipóides dispersas, que ao exame histopatológico revelaram hiperplasia glandular e intenso infiltrado inflamatório granulomatoso em torno a vasos sanguíneos, na mucosa e submucosa, notando-se, por vezes, no interior dos granulomas, secções de larvas do verme. Endo e perilinfangite granulomatosa também foram observadas na submucosa. Fígado: havia acentuada esteatose micro e macrogoticular, centrolobular e periportal, observando-se, em alguns espaços-porta de maior dimensão, numerosas larvas na luz de vasos linfáticos e no perineuro, sem reação inflamatória (Figura 3). Encéfalo: apresentava edema cerebral e leptomeningite purulenta, tendo se observado numerosos bacilos Gram negativos de permeio ao infiltrado inflamatório.

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

A estrongiloidíase é uma das parasitoses intestinais de mais difícil diagnóstico. Além de ser crônica e assintomática, na maioria das vezes, não há teste diagnóstico específico ideal, com 25% de exames parasitológicos falso-negativos. Em indivíduos imunocomprometidos o verme pode causar síndrome de hiperinfecção ou doença disseminada. As manifestações clínicas de hiperinfecção por estrongilóide são variáveis, de início agudo ou insidioso, sem sintomas patognomônicos, associadas também a fatores como a diminuição da resistência orgânica e o estado nutricional do paciente11. No presente caso, a síndrome de hiperinfecção somente foi diagnosticada à autopsia, baseada na presença de numerosas larvas, ovos e vermes adultos no tubo digestivo, fígado e pulmão. Não havia registro de queixas gastrointestinais em nenhuma das internações e não foi detectada parasitose intestinal ao exame de fezes. Somente em um dos hemogramas foi realizada contagem diferencial de células, a qual revelou eosinofilia de 15%. A intensidade da estrongiloidíase parece se correlacionar com os níveis de eosinófilos no sangue, observando-se cifras elevadas em 94% dos pacientes sintomáticos, sugerindo prognóstico favorável, mesmo em pacientes maciçamente infectados4 10. No entanto, há discordância sobre o prognóstico de eosinofilia em pacientes imunocomprometidos com estrongiloidíase crônica. No presente caso, embora impossível confirmar, os níveis de eosinófilos no sangue periférico podem ter sido ainda mais elevados.

Mais de 50 casos de hiperinfecção e doença disseminada foram publicados desde o ano 20007. Os principais fatores de risco incluem terapia imunossupressora, particularmente corticosteróides, em transplantes, neoplasias malignas hematológicas, infecção pelo vírus-1 humano T-linfotrópico, desnutrição e diabetes mellitus5. Dos fatores citados, imunossupressão devida ao uso de corticóides5 7 13 e quimioterapia para câncer são os mais frequentemente relatados, embora o uso concomitante de esteróides possa obscurecer a relação entre essas duas causas8. A administração de corticosteróides sistêmicos precipita a muda de larvas rabditóides intestinais a filariformes invasoras9. Porém, os mecanismos para a disseminação ainda não são bem compreendidos. Há vários relatos de casos de hiperinfecção não associados à imunodeficiência1 5.

A evolução do presente caso foi semelhante à descrita nas hiperinfecções por Strongyloides stercoralis em pacientes que apresentam essa parasitose intestinal concomitante ao comprometimento da imunidade celular. Há vários relatos de hiperinfecção em pacientes com mieloma múltiplo7 8. Em dois desses pacientes foi instituída terapia imunossupressora, incluindo corticosteróides, não havendo referências detalhadas sobre os demais pacientes. No presente caso, múltiplas secções histológicas da medula óssea dos corpos vertebrais de L4-L5, obtidos à autopsia, não revelaram neoplasia residual. Os achados histopatológicos mostraram, além da presença maciça de larvas de estrongilóide, paciente desnutrido, com esteatose hepática, hemorragia pulmonar, erosões intestinais e leptomeningite purulenta. Terapia imunossupressora, incluindo corticóides, neoplasia e desnutrição, provavelmente agravada pela parasitose, contribuíram para o desfecho fatal da doença. Meningite e outras infecções bacterianas secundárias são complicações comuns e potencialmente sérias da síndrome de hiperinfecção4 11 12. Durante a migração das larvas através do epitélio intestinal, bactérias entéricas se disseminam sistemicamente, o que pode levar a septicemia, com taxas de mortalidade relatadas entre 50% a 86%5.

Devido ao largo uso de drogas imunossupressoras na atualidade, a possibilidade de hiperinfecção por Strongyloides em pessoas com comprometimento imunológico não deve ser subestimada. Indivíduos com infecções latentes ou subclínicas podem desenvolver doença fatal anos após deixar a área endêmica. Mesmo com os recentes avanços nos testes laboratoriais, a estrongiloidíase ainda apresenta dificuldade de diagnóstico, devido tanto às peculiaridades do ciclo biológico do verme, quanto pela freqüente ausência de sintomas.

A melhor estratégia para prevenir a hiperinfecção em pacientes cronicamente infectados pode ser tratá-los empiricamente antes de iniciar a terapia imunossupressora.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos ao Dr. Gustavo Takano pelo auxílio na realização das fotomicrografias.

 

REFERÊNCIAS

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 Endereço para correspondência:
Dra. Moema Gonçalves Pinheiro Veloso
Núcleo de Citopatologia e Anatomia Patológica/Hospital de Base do Distrito Federal
SMHS Q 101 Área Especial
70332-000 Brasília DF
Tel: 55 61 3325-4014
e-mail: moema.veloso@gmail.com

Recebido para publicação em 18/3/2008
Aceito em 25/07/2008