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Forma tumoral da esquistossomose mansoni cerebelar: relato de caso e medida dos granulomas

Pedro RasoI; Alexandre TafuriII; Ney da Fonseca LopesIII; Eduardo Rossi MonteiroIV; Wagner Luiz TafuriV

IDepartamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG IILaboratório Tafuri de Patologia, Belo Horizonte, MG IIIFaculdade de Medicina de Ciências Médicas de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG IVHospital Santana de Belo Horizonte, MG VDepartamento de Patologia Geral do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

DOI: 10.1590/S0037-86822006000300012


RESUMO

Caso raro de forma tumoral da esquistossomose mansoni cerebelar diagnosticada pela biópsia, em um paciente de 15 anos, que apresentou sinais e sintomas neurológicos 60 dias antes da cirurgia. A tomografia computadorizada revelou lesão expansiva, hiperdensa, localizada no cerebelo, sugestiva de glioma. O exame histopatológico mostrou numerosos ovos de S. mansoni envolvidos por reação inflamatória granulomatosa na fase necrótico-exsudativa, confluentes, localizados principalmente na camada interna, granular, do cerebelo, formando pseudotumor no verme cerebelar e hemorragia recente na ponte. Foram medidas as áreas dos granulomas.

Palavras-chaves: Schistosoma mansoni. Esquistossomose cerebelar. Tumor cerebelar. Neuro-esquistossomose mansoni.


ABSTRACT

An unusual case of the tumoral form of cerebellar Schistosomiasis mansoni, in a 15 year-old male diagnosed by biopsy, with neurological signs and symptoms 60 days prior to surgery. Computerized tomography show a hyperdense expanding lesion located in cerebellum, suggesting glioma. Histopathological examination showed numerous S. mansoni ova involved by granulomatous inflammation in necrotic-exudative phase, located mainly in the internal, granular layer of the cerebellum, creating a pseudotumor in the cerebellar vermis and a recent hemorrhage in the trunk. The areas of granulomas were measured.

Key-words: Schistosoma mansoni. Schistosomiasis of cerebellum. Cerebellum tumor. Neuroschistosomiasis mansoni.


 

 

A esquistossomose do sistema nervoso central (SNC) é relativamente rara18. Ocorre principalmente na medula espinhal10, sendo responsável por cerca de seis27 a 13,4%7 das mielopatias nas áreas endêmicas, não ultrapassando de 200 o número de casos descritos na literatura17.

A localização intracraniana, notadamente nos hemisférios cerebrais, é bem mais rara21.

O mesmo acontece com a localização cerebelar. Até o momento tinham sido descritos cerca de onze casos de forma tumoral nesta localização. Este seria, portanto, o décimo segundo caso da literatura e o primeiro em que se determina a área dos granulomas.

 

RELATO DE CASO

Paciente de 15 anos, masculino, proveniente de Capelinha/MG. Internou-se no Hospital Santana, BH, em 05/11/03. Há 60 dias com cefaléia esporádica e fraqueza dos membros inferiores e há 15 dias com quadro de vômitos em jato e tonteira. Apresentava ataxia locomotora, sinal de Romberg com queda para traz, pescoço em posição de Maomé. Fundo de olho: estase incipiente de papila, bilateral. Afebril, anictérico, corado, hidratado, consciente e lúcido. Ausência de hepatesplenomegalia. Leucograma: 4.200 leucócitos por mm3 com eosinofilia de 11%. Exame de fezes negativo.

Em 12/11/03 foi feita a remoção microcirúrgica de massa expansiva, irregular, de limites imprecisos, ao nível do quarto ventrículo, estendendo-se da ponte ao vermis cerebelar, diagnosticada pela tomografia computadorizada como glioma.

O paciente evoluiu mal, vindo a falecer no dia 14/11/03 com parada cardiorespiratória súbita, com impressão diagnóstica de edema de tronco encefálico.

Exames anatomopatológicos. Foram recebidos, para exames, um fragmento da ponte, pardo-amarelado e macio, medindo 1,0 X 0,7 X 0,7cm e vários fragmentos do cerebelo, irregulares, acastanhados e macios, com área de hemorragia, medindo em conjunto 3,0 X 2,5 X 1,0cm. O material foi fixado em formol a 10%, incluído em parafina e corado com hematoxilina e eosina (HE).

A análise morfométrica dos granulomas do cerebelo foi realizada em uma lâmina de cada amostra, coradas pela HE, segundo Caliari9, com o auxílio do analisador de imagens Koton Eletronic Versão 2.0 (software KS 300). As imagens foram captadas por câmara digital acoplada em um microscópio (aumento de 110x) que, por sua vez, estava ligado a um computador. As mensurações foram feitas considerando-se vinte campos aleatórios ou área de 640 X 480 píxels na tela do monitor, na unidade de área em micrômetros quadrados (um2). Após o estabelecimento dos campos e captação das imagens, cada granuloma foi delimitado manualmente com o cursor e o computador determinava automaticamente o valor da área do granuloma.

Os cortes histológicos efetuados mostraram numerosos granulomas esquistossomóticos, na grande maioria localizados na camada interna (granular) e poucos na camada externa (molecular) do córtex cerebelar, volumosos, freqüentemente confluentes e enfileirados, centrados ou não por um ovo, em geral calcificado. Quase todos estavam na fase necrótico-exsudativa caracterizados por extensa área de necrose central, envolvida por células epitelióides, semelhantes aos granulomas hepáticos descritos por Raso e Neves24, entre 45 a 70 dias de evolução da forma aguda toxêmica da esquistossomose. Diferenciavam dos granulomas do fígado e de outras sedes, nessa fase da doença, por não apresentarem eosinofilia em torno da necrose e por envolverem ovos quase sempre calcificados (Figuras 12 e 3). Raros eram os granulomas no início da fase produtiva, contendo células gigantes de tipo corpo estranho. Devido à confluência e o grande volume dos granulomas, esses não só destruíram grande parte da camada granular, mas também comprimiram, desorganizaram e destruíram parte da zona intermediária (entre a camada granular e a molecular), onde se concentram as células de Purkinge.

 

 

 

 

 

 

Nas proximidades, mas independentes dos granulomas, foi comum o encontro de hiperemia, edema e focos de hemorragia na camada molecular e na zona intermediária, envolvendo vasos. Esses mostravam necrose de tipo fibrinóide da parede, provavelmente provocada por imunocomplexos. Por vezes, pequenos focos de infiltrado de células mononucleares e hemorragia recente foram identificados também em torno de vasos da leptomeninge. Não foram encontrados vermes ou resquícios deles nos locais das lesões.

Os resultados da morfometria dos granulomas, sumariados na Tabela 1, mostraram que os granulomas, praticamente todos na fase necrótico-exsudativa, mediram, em média, 212.791,24 mm2 (+/- 40.235,23).

 

 

Ao nível da ponte os neurônios estavam bem preservados. As lesões eram representadas por hiperemia, edema e múltiplos focos de hemorragia, por vezes extensos, preferencialmente perivasculares. Ausência de ovos e de granulomas.

 

DISCUSSÃO

O ovo, principal responsável pelas lesões anatomopatológicas na esquistossomose, independentemente da sua forma clínica, atinge a medula ou o cérebro por dois caminhos fundamentais: pela deposição in situ em conseqüência da migração anômala da fêmea adulta ou pela embolização de ovos por via arteriolar, através do plexo venoso retrógrado perivertebral avalvular de Batson que comunica as veias intrabdominais com as veias da medula espinhal, favorecido pelo aumento da pressão intrabdominal durante o esforço para defecação ou acessos de tosse18. Esse mecanismo explicaria, também, a maior incidência das lesões na região lombosacra da medula.

Em quase todos os casos sintomáticos da neuroesquistossomose, o envolvimento do SNC pode se estabelecer nos primeiros estágios da infecção (forma aguda toxêmica16 ou não toxêmica6 28), no decurso da forma intestinal ou, nos portadores da forma hepatesplênica (HE), principalmente quando está associada à forma cardiopulmonar (CP)12.

Como nas formas HE e CP os ovos são carreados como êmbolos, através da via arterial ou do fluxo venoso retrógrado, as lesões se formam ao acaso, podem ser mínimas, esparsas, sem sintomatologia própria ou oligossintomática, constituindo, não raro, mero achado de necropsia19. Outras vezes, sobretudo quando é grande o número de ovos e granulomas concentrados em uma determinada área do SNC, pode surgir o efeito de massa, traduzido na tomografia computadorizada, nesse caso, por lesão nodular, captante, na região central da ponte, estendendo-se ao vermis cerebelar, sugerindo a hipótese de glioma ou meduloblastoma.

O segundo mecanismo19, seria o da deposição de ovos pela fêmea adulta que migra para o SNC. Esse seria o principal, senão o único mecanismo da parasitose do SNC nos pacientes com a forma intestinal ou hepatointestinal.

Estamos de acordo com estas observações, ou seja, que o efeito de massa é produzido pela grande concentração de ovos e granulomas em uma área circunscrita da medula espinhal, do cérebro ou do cerebelo. Esse fato explicaria a formação do pseudotumor pela confluência dos granulomas e dos graves sintomas e sinais clínicos observados na maioria dos pacientes. A não demonstração dos vermes ou de seus resquícios nas lesões não invalida a hipótese de migração e postura de ovos pela fêmea, in situ. A raridade desse mecanismo explicaria também a baixa freqüência da forma tumoral da esquitossomose, principalmente no cérebro e cerebelo.

Segundo dados recentes foram levantados cerca de 18 casos de forma pseudotumoral da esquistossomose intracraniana, dos quais onze ocorreram no cerebelo. Este seria, portanto, o décimo segundo caso da literatura, com formação de massa tumoral simulando glioma e o primeiro acompanhado de hemorragia da ponte (Tabela 2).

 

 

Quase todos ocorreram em jovens do sexo masculino. Apenas dois pacientes tinham mais de 38 anos3 13. Estes dois últimos não residiam em zona endêmica, mas foram contaminados no Iêmen13 e no Quênia3. Sete dos doze casos foram diagnosticados em Minas Gerais, Brasil. Apenas este caso descrito evoluiu para o óbito.

Em comum com o caso descrito por Bambirra e cols4, o primeiro de localização cerebelar, destaca-se a disseminação miliar maciça de ovos com formação de granulomas com extensas áreas de necrose, envolvidos por macrófagos, linfócitos e poucos eosinófilos, aproximadamente no mesmo estágio evolutivo, freqüentemente contíguo, não relacionado com a forma HE da esquistossomose, indicando pertencer a uma mesma postura ou a posturas bem próximas umas das outras23. Este fato falaria a favor da hipótese da migração e postura dos ovos pela fêmea, in situ, apesar da não demonstração da presença de vermes nas lesões.

A tendência dos granulomas a se disporem um ao lado do outro, formando uma fileira indiana, seria o substrato anatômico da imagem linear e nodular arborizada, descrita em três casos de esquistossomose do SNC26.

Como assinalamos, em nossos resultados, não foram encontrados ovos ou granulomas ao nível da ponte. Nos fragmentos examinados havia hemorragias perivasculares, ligadas, provavelmente à necrose de arcos das paredes dos vasos, provocados por imunocomplexos. Hemorragias cerebrais, cerebelares e meníngeas foram descritas na esquitossomose do SNC1 15 20 22 25.

 

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Recebido para publicação em 23/1/2006
Aceito em 31/3/2006