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Vanize de Oliveira Macêdo (*1934 †2006)

Aluízio Prata

DOI: 10.1590/S0037-86822006000300019


No dia 1º de abril próximo passado Vanize de Oliveira Macêdo faleceu em Brasília, onde foi sepultada no Campo da Esperança, em meio à consternação de inúmeros amigos e parentes. Completaria 72 anos em 8 de junho.

Vanize era baiana, nascida em Palmeiras, cidade situada na Chapada Diamantina. Completou o curso primário em sua terra natal, transferindo-se para Salvador a fim de prosseguir seus estudos. Em 1958, diplomou-se em medicina na Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública. No ano seguinte, trabalhou na Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, e no próximo lustro já se orientava para as atividades acadêmicas. Apresentada por Rodolfo Teixeira, começou a freqüentar a Clínica de Doenças Tropicais e Infectuosas recém-instalada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Bahia, que constituía nova realidade. A ambiência da Clínica, orientada para o estudo das doenças transmissíveis, para o ensino e a formação médica, centrada no cuidado de pacientes das parcelas mais necessitadas da população, e com o objetivo de contribuir para a solução dos problemas das nossas principais doenças endêmicas deve ter vibrado todas as fibras do coração da jovem médica. De outro modo, não se justificaria o seu trabalho não remunerado por mais de dois anos, o entusiasmo com o meio universitário e a percepção de que a opção estaria condicionada à persistência e ao aprimoramento através da constante atualização dos conhecimentos.

 

 

Em fase de tomada de decisões na orientação do futuro, além de gostos, propensões, e fatores determinantes, são fundamentais as predisposições. As coisas em si mesmas, como dizia Montaigne, podem ter peso, medidas e condições intrínsecas, mas dentro de nós a alma as transformam como entende.

A competência médica e as qualidades pessoais de Vanize, sua facilidade de relacionamento e disposição para trabalhar foram gradativamente se ressaltando. Então, seu espaço no meio acadêmico começou a se delinear em 1964, após fazer o Curso de Medicina Tropical.

Em 1965, decidida a realização de um estudo longitudinal em São Felipe, para se conhecer melhor a história natural da Doença de Chagas, ela foi indicada para conduzir os trabalhos na área, principiados em junho do mesmo ano. Na época, era tarefa árdua exercer atividades de pesquisa em localidades remotas, de difícil acesso e desprovidas de conforto. Mas, era nestas áreas, sem assistência médica, ondea população ignorava a causa de seus males, que as doenças se apresentavam com feições, mecanismos de transmissão, nosogenia e evolução naturais. Por convívio em sua terra natal, Vanize conhecia o infortúnio das populações carentes e tinha convicção da importância de seu trabalho para minorar as precárias condições de saúde. Nunca se sentia estranha nas áreas endêmicas, seja em São Felipe, Mambaí, Lábrea, Costa Marques ou Sena Madureira. Nelas, atendia com dedicação e competência todos os que lhe procuravam, fossem ou não do Projeto de Pesquisa e deste modo dignificando nossa bela profissão. O Projeto São Felipe implantado sob o patrocínio da OMS, seguiu um planejamento padronizado para permitir comparações com outras áreas endêmicas, tendo em vista diferenças geográficas. A experiência nele adquirida serviu para a elaboração de uma metodologia adaptada ao estudo longitudinal da doença de Chagas, publicada pela OMS e pelo CNPq. Foram feitos exames clínicos, laboratoriais, radiológicos e eletrocardiográficos de cerca de 5.000 indivíduos, repetidos três vezes no seguimento.

Em 1968, Vanize fez especialização em Cardiologia em São Paulo, na USP. E ao completar sua qualificação universitária em 1974, quando se tornou Livre Docente pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, já havia dado importante contribuição científica para o conhecimento da doença de Chagas, com estudos sobre a morbidade, a evolução, a influência da exposição às reinfecções, a ergometria, a eletrocardiografia dinâmica, o teste da pilocarpina, a neuropatia periférica, a forma aguda inaparente, o teste de Chagas Latex, vacina em cães, abortamento, prematuridade, natimortalidade, abreugrafia no diagnóstico da esofagopatia, construção de habitações de baixo custo e tratamento específico, sendo alguns destes pioneiros.

Então, já era uma pesquisadora de renome. Deve ter sentido necessidade de ampliar seu campo de ação e optando por novos desafios, foi para Brasília. No Núcleo de Medicina Tropical, continuou trabalhando com o mesmo fervor e eficiência, sobre doença de Chagas, mas também leishmaniose, cisticercose, malária e outras doenças. Suas contribuições científicas seguiram na mesma intensidade e qualidade, mantendo predileção pelos estudos em áreas endêmicas. Teve participação direta e ativa em todas as atividades desenvolvidas pelo Núcleo.

Após 1987, enfrentou um desafio especial, assumindo a Coordenadoria do Núcleo de Medicina Tropical, e assim revelando mais uma faceta de sua personalidade, a de Chefia de Grupo. Ampliou instalações com a construção de nova ala, iniciou o Doutorado no Curso de Pós-graduação em Medicina Tropical, deu mais visibilidade à Instituição como se pode ver pela excelente publicação comemorando os 30 anos de sua criação e aumentou a cooperação com órgãos governamentais principalmente os de saúde e de fomento às pesquisas. Foi assessora de vários deles, membro de Comitês. Coordenadora da área Médica II da CAPES para avaliação dos Cursos de Pós-graduação, auxiliando na implantação dos atuais critérios de julgamento. A sua boa performance dava ensejo a novas solicitações. Sob sua gestão, o Núcleo desempenhou melhor a terceira atividade – servir de foro para debates sobre nossas grandes endemias – sendo as outras duas fazer pesquisas e formar pessoal, que justificaram sua criação.

Na UnB, afora sua atuação no Núcleo, foi membro de Conselhos, Colegiados e Comitês. Alheia aos debates políticos e às freqüentes e desatinadas greves deflagradas na Instituição. Mas, tomava partido quando se tratava de questões relacionadas às atividades precípuas da Universidade ou condições de ensino. Quando diferentes interesses se juntaram para forçar a realização do internato fora do Hospital da Universidade, o que resultaria em relaxamento na educação médica, apoiou os poucos que contrariavam a iniciativa. Posteriormente, com ainda maior energia, liderou as ações para obtenção de um hospital de ensino no campus universitário.

A UnB concedeu-lhe o título de Professora Emérita, o Mérito Científico e o Prêmio Prata da Casa. Seu nome foi dado à Enfermaria de Clínica Médica do atual Hospital Universitário.

Teve atuação destacada no âmbito da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, tendo sido Presidente no período de 1993-1994. Prestou irrestrito apoio à Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e ajudou a estabilizar suas finanças. Assídua freqüentadora dos Congressos, participava ativamente das démarches na obtenção dos consensos para escolha de dirigentes que, em sua opinião, deviam estar comprometidos com a integridade e com os objetivos da Sociedade e que pretendessem servi-la e não usá-la em seu proveito.

Exerceu a profissão médica com proficiência, dedicação, zelo e honestidade, ouvindo com atenção e paciência as queixas dos doentes. Sempre teve compaixão e procurou ajudar àqueles que, na jornada da vida, ia encontrando à beira do seu caminho ou que a procuravam em busca de compreensão, conselho, consolo ou proteção.

Gostava de trabalhar em equipe, onde era componente agregador. Em seus relacionamentos profissionais “não reconhecia outra soberania senão a do espírito, outra nobreza a não ser a da inteligência”. Vivia rodeada por estudantes. Acreditava na necessidade do professor ter ascendência pessoal sobre os discentes. Era exigente. No entanto, compreensiva e atenciosa e com freqüência auxiliava os alunos em suas necessidades. Estava sempre atualizando seus conhecimentos. Dela pode-se dizer, parodiando Ruy Barbosa: ensinou pela palavra e pelo exemplo, mais pelo exemplo do que pela palavra.

Vanize será lembrada não somente pela suas realizações no campo científico, perpetuadas nas publicações, como educadora, formando gerações de médicos, residentes, mestres e doutores, e como médica competente e bondosa, mas também pelos seus atributos pessoais. Inteligente, bem humorada, de simpatia irradiante, misericordiosa, de boa índole, pronta a servir ou ajudar os que dela necessitassem. Altiva, tinha a têmpera e a rigidez dos sertanejos. Independente, mas escrava dos ideais que acalentava e professava.

Teve vida ativa, útil e tranqüila, baseada no grande ensinamento de que “a felicidade, está em absorver o espírito por uma vocação que o satisfaça”.

E quando chegou a hora derradeira, não a temeu, e nem recuou. Enfrentou com estoicismo todos os sofrimentos de sua doença. E para sua última viagem, pertencia à estirpe dos bem-aventurados, sobre os quais William Osler disse que: “Aquele cujo rastro palmilhou, a cujos enfermos assistiu e de cujos filhos cuidou, lhe terá legado, como passaporte, a sua benção…”.