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Avaliação da confiabilidade da gota espessa em um estudo de campo conduzido em uma área endêmica de malária no Médio Rio Negro, Estado do Amazonas

Martha Cecilia Suárez-Mutis; José Rodrigues Coura

Departamento de Medicina Tropical do Instituto Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ

DOI: 10.1590/S0037-86822006000500014


RESUMO

Com o objetivo de medir a confiabilidade da gota espessa em uma área de infecção pelo Plasmodium foi realizado um estudo no qual foram avaliadas 322 gotas espessas, lidas em condições normais de campo, por microscopista treinado. Posteriormente, as mesmas lâminas foram examinadas por outro microscopista que fez a leitura em condições ideais. A concordância foi medida usando o índice Kappa. Nos pacientes com sintomas de malária foi encontrada uma concordância de 0,91 (IC 95% 0,57-0,98 p<0,05) enquanto nos pacientes com infecção assintomática o valor do índice Kappa foi de 0,42 (IC 95% 0,15-0,68 p<0,05). Conclui-se que em áreas onde há infecção assintomática é fundamental aumentar a confiabilidade da gota espessa aumentando o número de campos lidos.

Palavras-chaves: Malária. Gota espessa. Concordância. Índice Kappa.


ABSTRACT

In order to assess the reliability of the thick smear in a Plasmodium infection area, 322 thick smears were examined by a trained microscopist in field conditions. Later, the same smears were examined by an experience microscopist in ideal laboratory conditions. Reliability was measured by the Kappa index. In symptomatic malaria patients the Kappa index was 0.91 (IC 95% 0.57-0.98 p<0.05) while in asymptomatic Plasmodium infection the Kappa index was as low as 0.42 (IC 95% 0.15-0.68 p<0.05). In areas of asymptomatic infection, improvement in the sensibility of thick smears by increasing the number of microscopic fields read or using other more accurate diagnostic malaria techniques alone or in combination is fundamental.

Key-words: Malaria. Thick smear. Measure. Kappa index.


 

 

A gota espessa continua sendo o padrão ouro para o diagnóstico da malária. Os resultados da microscopia dependem não somente da qualidade da coloração, do microscópio e da técnica de preparação das lâminas, mas também da concentração, experiência e motivação do microscopista5 7. Há um limiar de detecção, segundo o grau de parasitemia existente no paciente e do número de campos lidos12. Em condições ideais, um microscopista é capaz de detectar densidades parasitárias tão baixas como 10 a 20 parasitas por cada microlitro de sangue. Em condições de campo, o que ocorre normalmente na maior parte das áreas malarígenas do mundo, a capacidade de detecção necessita de até 100 parasitas por cada microlitro14. Os programas de prevenção e controle de malária usam o índice Kappa3 6 8 como um indicador do controle de qualidade das gotas espessas nos diferentes níveis do laboratório nas áreas endêmicas. O índice Kappa mede a concordância entre técnicas ou observadores levando em consideração a probabilidade de se obter acordos simplesmente por acaso. Segundo as diretrizes dos programas de controle de malária, todas as lâminas positivas para Plasmodium e 10% das lâminas negativas devem ser relidas por um microscopista em condições ideais e o resultado deve ser comparado com os resultados do microscopista de campo ou que fez a primeira leitura. Na maior parte das áreas malarígenas nas Américas, onde os pacientes têm parasitemias altas ou moderadas, espera-se uma concordância por índice Kappa, superior a 0,8. Em áreas onde há infecção assintomática os pacientes apresentam baixas parasitemias4 13. Nos últimos anos, no Brasil têm sido descritas algumas áreas onde ocorre infecção assintomática por P. falciparum e/ou P. vivax em Rondônia1, Mato Grosso2, no médio rio Negro11 e na área Yanomami9. Não sabemos qual é o comportamento do índice Kappa nestas áreas. Este trabalho foi realizado com o objetivo de medir a concordância entre dois microscopistas experientes no diagnóstico de malária em uma área de infecção assintomática.

 

MATERIAL E MÉTODOS

Foram realizadas 322 gotas espessas envolvendo todos os moradores em uma área de infecção assintomática de malária no rio Padauiri, médio rio Negro, Amazonas. Todas as gotas espessas foram coletadas e coradas pela mesma pessoa usando a técnica padronizada pela FUNASA/MS e lidas por um microscopista experiente em condições de campo, logo após a coleta. Posteriormente, as mesmas lâminas foram entregues a outro microscopista experiente, que não conhecia os resultados prévios, que fez novas leituras em condições de laboratório para o controle de qualidade. Tanto o microscopista no campo quanto o do controle de qualidade leram 200 campos em cada lâmina. Foi realizada uma avaliação qualitativa da densidade parasitária assim: +/2: 40 a 60 parasitas contados nos 200 campos; +: 1 parasita por campo; ++: de 2 a 20 parasitas por campo; +++: de 21 a 200 parasitas por campo; ++++: mais de 200 parasitas por campo. Quando houve uma parasitemia menor de 40 parasitas por campo, os resultados foram expressos pelo número de parasitas contados nos 200 campos. Foram definidos como infecção assintomática os casos de pessoas com gota espessa positiva que não apresentaram nenhum sintoma de malária (febre, cefaleia ou calafrios) trinta dias antes e depois da realização da gota espessa.

Para medir a concordância resultante foi usado o Coeficiente Kappa. Os valores de Kappa ajustados por prevalência e viés de discordância e os intervalos de confiança foram calculados usando o programa kappa.exe (software de uso livre). Posteriormente, foi realizado um PCR-nested de todas as amostras obtidas de pacientes, segundo o protocolo modificado de Snounou10. Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da FIOCRUZ-RJ (Protocolo CEP 157/02)

 

RESULTADOS

Das 322 lâminas examinadas, 17 (5,3%) foram dadas como positivas; 6 (1,9%) foram de pacientes sintomáticos e 11 (3,4%) de pacientes assintomáticos. Dos pacientes com sintomas, 5 (83,3%) foram dados como positivos por ambos microscopistas e 1 (16,7%) foi discordante. Dos pacientes assintomáticos, 3 (27,3%) foram dados como positivos por ambos microscopistas, 7 (63,6%) só foram detectados no controle de qualidade e 1(9,1%) foi detectado pelo microscopista de campo. O coeficiente Kappa geral (infecções sintomáticas + assintomáticas) foi de 0,63 (IC 95% 0,39-0,80 p<0,05), Na tabela 1, observa-se a concordância quando se estratifica entre infecção sintomática e assintomática. A concordância foi de 0,91 (IC 95% 0,57-0,98 p<0,05) quando comparadas lâminas de pacientes sintomáticos, enquanto o coeficiente Kappa foi baixo 0,42 (IC 95% 0,15-0,68 p<0,05) se são comparadas lâminas de casos de infecção assintomática. O grau de falta de concordância foi mais forte nas mais baixas densidades parasitárias; entre os pacientes assintomáticos, 5 (62,5%) de 8 lâminas foram discordantes. Todos os resultados dados como positivos no controle de qualidade foram positivos no PCR. Todos os pacientes sintomáticos tinham infecção pelo P. vivax; nos pacientes assintomáticos, 10 tinham infecção pelo P. vivax e um pelo P. falciparum.

 

 

DISCUSSÃO

Apesar do exame padrão da gota espessa permitir facilmente o diagnóstico da infecção por Plasmodium em indivíduos não imunes devido à alta ou moderada densidade parasitária, é freqüentemente inadequado para o diagnóstico em áreas onde a densidade parasitária é muito baixa como ocorre em locais de infecção assintomática 4 13. Os programas de controle usam o índice Kappa que permite verificar a concordância dos resultados das gotas espessas entre diferentes examinadores. Um índice entre 0,8 e 1,0 é considerado quase perfeito, entre 0,4 e 0,79 moderado e um índice menor de 0,39 é considerado pobre e o microscopista deve passar por uma reciclagem. Nas infecções sintomáticas nas quais a parasitemia é elevada, a concordância entre diferentes examinadores normalmente é alta. Em nosso estudo, a concordância foi quase perfeita (K=0,91) na infecção sintomática. Entretanto, encontramos uma moderada concordância do índice Kappa em casos de infecção assintomática por Plasmodium (K=0,42) apesar de ter realizado a leitura de 200 campos microscópicos. Concluímos que é necessário reconsiderar a utilização exclusiva da gota espessa em áreas nas quais existe infecção assintomática onde baixas parasitemias são prevalentes. É preciso melhorar a confiabilidade da gota espessa aumentando o número de campos lidos, o que nem sempre é possível em áreas de alta endemicidade devido a carga de trabalho. Neste caso, específicamente, este aumento da confiabilidade levaria também a um aumento da sensibilidade. Por outro lado, deveríamos melhorar o controle de qualidade dos laboratórios de referência.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem aos funcionários da Fundação Nacional da Saúde em Barcelos assim como à Gerência da malária da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas pela leitura e controle de qualidade das lâminas de malária.

 

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 Endereço para correspondencia:
Prof. José Rodrigues Coura
Deptº de Medicina Tropical/IOC/FIOCRUZ
Av. Brasil 4365, Manguinhos
21045-900 Rio de Janeiro, RJ
Tel: 55 21 2598-4339
Fax: 55 21 2280-3740
e-mail: coura@ioc.fiocruz.br

Recebido para publicação em 10/11/2005
Aceito em 10/8/2006
Órgão financiador: CNPq, PAPES-FIOCRUZ