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Consulta técnica em epidemiologia, prevenção e manejo da transmissão da doença de Chagas como doença transmitida por alimentos

DOI: 10.1590/S0037-86822006000500020


PANAFTOSA, Rio de Janeiro, Brasil, 4 e 5 de maio de 2006

INTRODUÇÃO

A doença de Chagas constitui uma zoonose, produzida pelo protozoário Trypanosoma cruzi, majoritariamente transmitida por vetores, por via transfusional e por via congênita, que na atualidade, para determinadas situações epidemiológicas, tem demonstrado a sua capacidade de transmissão por via oral através do consumo de alimentos contaminados, provocando surtos de intoxicação alimentar pelo seu agente hemoflagelado.

Embora se conheçam surtos deste tipo em diversos países, ambientes e localidades endêmicas, a Amazônia tem sido o ecossistema onde tal transmissão tem recolhido a maior freqüência e/ou visibilidade.

Trata-se de uma forma da doença, com conhecida apresentação em forma de microepidemia, com casos graves e importante letalidade.

No ano 2005, um surto registrado numa área turística do sul do Brasil concitou a atenção internacional como conseqüência de ter afetado a um grupo de turistas internacionais e de ter sido registrada alta morbidade e mortalidade.

A importância que reveste este tema emergente, e as recomendações relacionadas ao estudo do tema emanadas da 1ª e 2ª Reunião da Iniciativa de Prevenção e Vigilância da Doença de Chagas na Amazônia – AMCHA (Manaus, 2004 e Caiena, 2005), estimulam a desenvolver entre técnicos e pesquisadores dedicados à doença de Chagas e inocuidade de alimentos, esta consulta técnica para traçar um posicionamento sobre a natureza e prevenção/controle desta variável de transmissão da infecção chagásica de alta morbidade e mortalidade.

 

OBJETIVOS DA CONSULTA

 Com a participação de expertos em epidemiologia da doença de Chagas e em inocuidade de alimentos, revisar a informação disponível sobre surtos de intoxicação alimentar pelo T. cruzi.
 Gerar conhecimento sobre os fatores de risco ambiental, social, cultural e epidemiológicos envolvidos neste mecanismo de transmissão e modalidade epidemiológica da doença de Chagas.
 Desenvolver os princípios de vigilância, prevenção, manejo e controle destas situações.
 Estabelecer um padrão modelo de manejo destas situações para os países endêmicos.

 

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

A transmissão oral da doença de Chagas ao ser humano e outros mamíferos, foi demonstrada experimental, clínica e epidemiologicamente, e hoje significa uma importante via de transmissão geradora de morbidade e mortalidade através das formas agudas da afecção. Ela é a via natural de disseminação de Trypanosoma cruzi, também, nos ciclos enzoóticos, no que diz respeito à infecção de mamíferos entomófagos.

Os motivos da sua atual emergência, podem estar fundamentados na:

 genuína emergência do fenômeno de transmissão com base na multiplicação de fatores e situações de risco (determinados alimentos, más práticas de preparação, invasão humana de âmbitos silvestres, riscos vinculados a vetores e reservatórios silvestres, entre outros);
 maior capacidade e disponibilidade de diagnóstico epidemiológico e nosológico, que permitam caracterizar casos e surtos;
 maior visibilidade e atenção ao fenômeno de transmissão oral, pela redução de sua incidência em relação a outras formas de transmissão, como a vetorial e transfusional, em fase de controle em algumas regiões.
 uma combinação de todos os fatores anteriormente considerados.

Esta Consulta Técnica conclui que é importante considerar a transmissão oral de Trypanosoma cruzi dentro dos Programas Nacionais de Prevenção e Controle da Doença de Chagas, Programas Nacionais de Prevenção e Controle de Doenças Transmitidas por Alimentos e dos Setores Nacionais de Inocuidade de Alimentos de forma coordenada, desenvolvendo componentes de prevenção, manejo e controle específicos, que operem dentro de estratégias de vigilância epidemiológica e atenção primária, de forma descentralizada e intersetorial.

Esta coordenação básica proposta se beneficiará de forma importante da integração complementaria dos setores de Vigilância em Saúde, Produção, Educação e de Meio Natural.

É por isso que se recomenda:

1. Que nos países endêmicos se considere a via de transmissão oral da doença de Chagas para o seu diagnóstico, prevenção, manejo e controle, dadas a incidência, morbidade e mortalidade que esta via gera.
2. Que frente a toda síndrome febril aguda, compatível com doença de Chagas aguda, se pense no diagnóstico diferencial da afecção por via oral pelo T. cruzi (síndrome febril prolongada, compatível com doença de Chagas aguda, com ausência de porta de entrada, e presença de outros sinais tais como: edema facial, edema de membros, adenomegalia, hepatomegalia, esplenomegalia, miocardite, exantema, meningoencefalite, manifestações hemorrágicas e icterícia).
3. A seguinte definição de casos:

Caso suspeito de transmissão oral: clínica compatível com a doença de Chagas aguda com provável ausência de outras formas de transmissão.

Caso provável de transmissão oral: diagnóstico confirmado de doença de Chagas aguda pelo achado do parasito no sangre periférico por método direto, provável ausência de outras formas de transmissão, e preferivelmente mais de um caso simultâneo com vinculação epidemiológica (procedência, hábitos, elementos culturais).

Caso confirmado de transmissão oral: caso provável, em que se excluíram outras vias de transmissão, com evidência epidemiológica de um alimento como fonte de transmissão.

Seria ideal, embora atualmente difícil, a comprovação do parasito no alimento, implicando, este objetivo, em uma real necessidade de investigação.

4. Aplicar as estratégias para garantir a inocuidade de alimentos em prevenção e controle da infecção chagásica transmitida por via oral:

 Boas Práticas de Higiene (BPH), Boas Práticas de Manufatura (BPM), Procedimentos Operacionais Estandardizados (POES) e eventualmente Análises de Perigos e Pontos Críticos de Controle (HACCP);
 Aplicação dos conceitos de Vigilância Integrada de Doenças Transmitidas por Alimentos, vinculando a parte clínica, parasitológica e a inocuidade de alimentos;
 Manejo integrado da prevenção e controle;
 Participação da comunidade e do setor produtivo num enfoque de informação, comunicação e educação de riscos e manipulação de alimentos.

5. Destacar como alimentos de risco, pelos seus antecedentes e a sua proximidade à presença de vetores, contaminação dos mesmos com as suas dejeções portadoras do T. cruzi ou provenientes de mamíferos reservatórios:

 frutas, outros vegetais e as suas preparações, como suco de cana de açúcar, açaí, patauá, buriti, bacaba, vinho de palmeira, entre outros;
 carne crua e sangue de mamíferos silvestres;
 leite cru.

Salienta-se, porém, que esses alimentos não trazem um risco de caráter primário per se, mas a sua inadequada preparação doméstica, artesanal ou eventualmente comercial, com graves carências higiênicas, de manufatura e conservação. Esta afirmação é particularmente importante para não estigmatizar a produção e/ou o consumo de alimentos que são importantes fontes de calorias e nutrientes para a população que os consome, e fonte de trabalho e ingressos para a gastronomia típica regional e o turismo de diversas áreas.

6. Desenvolver um forte componente de Informação, Educação e Comunicação (IEC), dirigido à população em risco, baseando-se no emprego das mensagens, técnicas e meios adequados para brindar de forma efetiva os conhecimentos de autocuidado pessoal e familiar e de BPH/BPM, no caso de produtores artesanais e comerciais, em relação a alimentos de risco e o seu consumo e manufatura.
7. O aperfeiçoamento de um componente regional modelo, adaptável a países, regiões e comunidades, em comunicação de risco frente à infecção chagásica adquirida por via oral.
8. Que a transmissão oral do T. cruzi seja um componente obrigado das atividades de formação de recursos humanos em saúde, em referência à doença de Chagas.
9. Que se desenvolvam integralmente, incorporados nos mecanismos de vigilância nacionais e de doenças transmitidas por alimentos, os processos para otimizar a sensibilidade e especificidade na determinação e estudo de surtos (microepidemias) de doença de Chagas por via oral, já que se tem a certeza que só estamos observando, estudando e caracterizando a ponta de um iceberg epidemiológico, que mantém oculta a completa realidade deste fenômeno.
10. Destacar a importância que a transmissão da infecção chagásica por via oral tem para a Sub-região Amazônica, que concentra a maioria, embora não a exclusividade, dos surtos identificados, e solicitar à Iniciativa Amazônica de Vigilância e Prevenção de Chagas (AMCHA) e aos seus países membros, especial atenção ao tema.
11. Solicitar às outras Iniciativas Subregionales (Cone Sul, Andina, Centro – América e México), que façam uma avaliação crítica do potencial de informação disponível e que otimizem a sua vigilância, para dimensionar este fenômeno de transmissão nas suas respectivas áreas.
12. Assumir a doença de Chagas como outra doença transmitida por alimentos (DTA) devendo, para efeitos práticos, ser considerada pelos órgãos nacionais encarregados da inocuidade de alimentos nos países endêmicos, e que os mesmos fomentem as suas estratégias de prevenção e de controle.
13. Conhecendo a falta de disponibilidade de benznidazol e de nifurtimox em muitos dos países endêmicos, e perante a gravidade dos quadros de doença de Chagas transmitidos por via oral e a urgência de seu tratamento, efetuar um novo chamado à responsabilidade das partes e instituições implicadas, para que a acessibilidade ao tratamento seja universal e oportuna.
14. Fomentar a pesquisa básica e aplicada no tema, para que possam ser obtidos conhecimentos que ajudem à compreensão deste fenômeno de transmissão oral do T. cruzi, e conseqüentemente a sua melhor interpretação epidemiológica e de prevenção/controle, tais como:
 viabilidade do T. cruzi nos diferentes alimentos, considerando fatores intrínsecos e extrínsecos;
 técnicas de detecção do T. cruzi em alimentos;
 técnicas de inativação do T. cruzi em alimentos;
 formas de contaminação dos alimentos pelo T. cruzi;
 condicionantes socioculturais e ambientais da preparação de alimentos em condições de risco;
 medidas de controle;
 desenvolvimento de investigações epidemiológicas consistentes (caso-controle e outros).

15. A busca em nível dos países dos mecanismos e procedimentos que permitam a aproximação dos setores de inocuidade de alimentos, manejo de DTA e prevenção e controle da doença de Chagas para atuar de forma coordenada em prevenção, vigilância e controle da transmissão oral.
16. Desenvolvimento de um protocolo de estudo de surtos de doença de Chagas de possível transmissão oral.

O presente documento não é um documento definitivo; o tema da doença de Chagas transmitida por via oral necessita e demanda do aporte de toda a comunidade científica e da saúde pública dos países das Américas.

Rio de Janeiro, 5 de maio de 2006

 

ORGANIZADORES

Enrique Pérez-Gutiérrez – HDM/VP, OPS/OMS, Brasil
Roberto Salvatella Agrelo – PFR em Doença de Chagas OPS/OMS, Uruguai.
Ruben Figueroa – HDM/CD, OPS/OMS, Brasil.

 

PARTICIPANTES

Aluízio Prata – Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
Ana Virgínia de Almeida Figueiredo – ANVISA, Brasil
Ângela Cristina Veríssimo Junqueira – Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, Brasil
Ângela Karinne Fagundes de Castro – ANVISA, Brasil
Antônio Carlos Silveira – Consultor Independente, Brasil
Fernando Abad-Franch – Instituto Leônidas e Maria Deane/Fiocruz, Brasil
Helena Cristina Hoffmann – DIVS/SES/SC, Brasil
Janilene Andrade da Costa Nascimento – ANVISA, Brasil
Jennie Herrera – Ministerio de Salud, Peru
João Carlos Pinto Dias – Instituto René Rachou/Fiocruz, Brasil
José Rodrigues Coura – Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, Brasil
Laura Misk de Faria Brant – ANVISA, Brasil
Marcelo Aguilar – Ministerio de Salud, Equador
Maria Aparecida Shikanai Yasuda – Faculdade de Medicina/USP, Brasil
Pedro Albajar Viñas – Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, Brasil, MSF-E
Renato Coelho – ANVISA, Brasil
Rita de Cássia Nahas Claumann – ANVISA, Brasil
Santiago Nicholls – Instituto Nacional de Salud, Colômbia
Sebastião Aldo S. Valente – Instituto Evandro Chagas/SVS, Brasil
Sílvia Cristina Silva Pedroso – ANVISA, Brasil
Sônia Gumes Andrade – Instituto Gonzalo Moniz/Fiocruz, Brasil
Soraya Oliveira dos Santos – SVS/Ministério da Saúde, Brasil