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Circuncisão masculina e infecção pelo HIV: uma polêmica mundial sem voz brasileira

Euclides Ayres de CastilhoI; Mark Drew Crosland GuimarãesII

IDepartamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP IIDepartamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

DOI: 10.1590/S0037-86822004000100013


RESUMO

Os autores trazem para reflexão a questão da circuncisão masculina como fator de proteção para infecção pelo HIV. Em breve histórico da abordagem do problema, na literatura mundial, identificam a ausência de pesquisas brasileiras sobre o tema. Por fim, problematizam a situação, lembrando que circuncisão masculina autodeclarada é passível de erros de classificação de relevante magnitude, implicando, por isso, vícios nas estimativas de riscos.

Palavras-chaves: Circuncisão masculina. Transmissão heterossexual do HIV. Erros de classificação. Brasil.


ABSTRACT

The authors discuss male circumcision as a protective factor against HIV transmission. The absence is noted of Brazilian data published in the international literature regarding this issue. Finally, it is emphasized that self-declared circumcision status is subject to substantial misclassification with the generation of biased risk estimates.

Key-words: Male circumcision. HIV heterosexual transmission. Misclassification errors. Brazil


 

 

Inúmeros trabalhos sobre circuncisão masculina e fatores de risco para a transmissão heterossexual do HIV foram apresentados no penúltimo Congresso Internacional de AIDS, realizado em Durban, 2000. Certamente, esta foi uma das razões que levaram os organizadores do XIV Congresso Internacional (Barcelona, 2002) a incluírem – heterosexual transmission, circumcision – como palavra-chave para a disposição dos trabalhos epidemiológicos a serem apresentados.

A questão da não-circuncisão como fator de risco para a infecção pelo HIV foi trazida, pela primeira vez, para a literatura médica, em 1988, por Simonsen e colaboradores13, apresentando uma investigação sobre fatores de riscos para a transmissão heterossexual do HIV, conduzida, em Nairobi, entre 340 homens, pacientes de uma clínica especializada em infecções sexualmente transmissíveis. Os homens sem circuncisão tiveram freqüência maior de soropositividade para o HIV, comparados com aqueles circundados (19,5% versus 8,3%; OR=2,7; I 95% C de 1,3 a 5,4). O mesmo grupo de Autores3 estudando, naquela cidade, uma coorte de 370 homens, inicialmente sem infecção pelo HIV, encontrou, por meio de uma análise de regressão logística, que o risco para soro-conversão estava independentemente associado com o fato do indivíduo ser circundado (RR de 8,2 e I 95% C de 3 a 23).

Em 1999, Halperin e Bailey9, em estudo ecológico, mostraram que as taxas estimadas de soroprevalência para o HIV, em países africanos, eram inversamente proporcionais às freqüências estimadas de homens circundados. Esses Autores, na época, sugeriram, fortemente, que a comunidade internacional de saúde oferecesse condições para realização de postectomia nos serviços de assistência médica, como medida de prevenção da transmissão do HIV por contato heterossexual. Por sinal, esse artigo suscitou o envio de várias correspondências para a revista The Lancet, onde ele foi publicado (vide, por exemplo, o volume 355, número 9.207, do ano de 2000). Assim, restrições foram feitas ao desenho de estudo, que por ser do tipo ecológico, poderia estar implicando falácias ecológicas; além delas, o fato dos países da Europa Ocidental, com baixa freqüência de homens circundados e níveis mundiais de menor magnitude de infecção pelo HIV quando cotejados com os Estados Unidos (com alta prevalência de HIV/AIDS e onde a circuncisão masculina é comum) não suportar essa hipótese, também foi levantado. Vale lembrar que Halperin recebeu severas críticas por ter dito a um jornal da imprensa californiana: “If I were a top [insertive partner in anal intercourse], and I didn’t like to use condoms, I would consider getting circumcised”. Seus julgadores discordavam do caráter absoluto da afirmação e do seu apelo para uma mídia, geralmente, sensacionalista. Além disso, até então, a circuncisão como fator de proteção para a infecção pelo HIV, era resultado de estudos empíricos, desenvolvidos entre homens com práticas predominantemente heterossexuais, e residentes na África subsaareana.

Em 2000, o periódico AIDS contempla um artigo de revisão sistemática e meta-análise sobre esse assunto14. De 27 estudos incluídos, 21 mostraram um risco reduzido de infecção pelo HIV em homens circundados. Vale dizer que todos os estudos diziam respeito a países africanos.

Outrossim, é oportuno salientar que a relação entre circuncisão e risco para infecção pelo HIV é raramente examinada em homens que fazem sexo com outros homens2. Um estudo estadunidense10, do tipo transversal, encontrou que homossexuais não-circundados tinham o dobro da chance de ser HIV positivo, comparados com os circundados, mas com um intervalo de 95% de confiança, tendo o valor 1 como limite inferior. Esse suposto excesso de risco, por outro lado, não foi observado em uma investigação1 feita em Sydney, Austrália, onde 63 homens, recém-infectados pelo HIV e referindo coito anal desprotegido como sendo suas práticas de maior risco para o HIV, não apresentaram diferenciais no que tange ao status de circundado, tanto entre aqueles com práticas de sexo anal predominantemente insertivas e os com práticas de sexo anal predominantemente receptivas.

Longe da pretensão de sermos autênticas vozes brasileiras no debate, mas por razões a seguir descritas, remetemos este artigo de opinião.

1) Buscando artigos científicos na base-de-dados MEDLINE por meio das palavras-chave “HIV and male circumcision and brazil”, nenhum trabalho foi encontrado; 2) não recordamos de matérias na imprensa brasileira sobre esse debate; 3) na condição de pesquisadores responsáveis por uma investigação sobre fatores associados à transmissão heterossexual do HIV de homens infectados para suas parceiras sexuais, achamos oportuno apresentar nossos resultados, referentes à transmissão sexual no sentido homem-mulher. Detalhes da metodologia e resultados da investigação foram publicados alhures4 6 7 8. Dentre 377 pares, das 180 mulheres infectadas, 85% eram parceiras de circundados, sendo essa proporção de 86%, nas mulheres negativas para o HIV. Esta pequena diferença não é estatisticamente significante (qui-quadrado = 0,128; p=0,720). Encontramos os seguintes fatores independentemente associados com a transmissão do HIV tipo homem-mulher: a) prática de sexo anal; b) não-uso ou uso irregular de preservativo nas relações sexuais vaginais; c) número de relações sexuais, no ano anterior à data da entrevista; d) uso de contraceptivo oral; e) sangramento vaginal pós-coito; f) e uma forte interação entre sangramento vaginal e história prévia de infecções sexualmente transmitidas; 4) colocamos ou apresentamos pomos para reflexão a nossa preocupação com o fato das análises sobre circuncisão masculina como fator de proteção para a infecção pelo HIV não levarem em consideração que circuncisão auto-referida quando comparada com o status dado por exame médico tem baixa concordância, daí derivando erros de classificação que, por seu turno, levam a estimativas viciadas dos riscos associados. Já, em 1958, Lilienfeld e Graham11 insistiam na freqüência de 34,4 % de discordância entre a afirmação de paciente sobre sua condição de circuncidado e os achados médicos. Em um livro clássico de epidemiologia12, a questão é reavaliada a partir dos dados de Dunn e Buell5. Os Autores12 do texto, cotejando as informações de 166 pacientes sobre seus status em relação à circuncisão com os achados médicos, observaram 28% de falsos-positivos e 17% de falsos-negativos, indicando, desta maneira, que os erros de classificação ocorrem nos dois sentidos. Para estes dados, encontramos um índice kappa de concordância=0,462, longe do ideal, isto é, igual a 1; 5) finalmente, propomos a professores de epidemiologia submeterem a seus alunos o seguinte exercício: recalcular os riscos observados nos estudos sobre associação entre circuncisão e infecção pelo HIV, ajustados aos erros de classificação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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 Endereço para correspondência
Prof. Euclides Ayres Castilho
Av. Dr. Arnaldo 455
01246-903 São Paulo, SP
E-mail: castil@usp.br

Recebido para publicação em 30/9/2003
Aceito em 9/10/2003