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Dengue endêmico: o desafio das estratégias de vigilância

Keyla Belizia Feldman Marzochi

Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas da Fundação do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ

DOI: 10.1590/S0037-86822004000500009


RESUMO

A interação entre infecção clínica, vetor e imunidade sorotípica da população define o risco de epidemia por dengue. A situação epidemiológica endêmico-esporádica seria meta aceitável de controle em regiões metropolitanas ante deficiências de urbanização, saneamento, acesso às residências por agentes sanitários, baixo poder residual de inseticidas biológicos e mobilização social. A Vigilância, então, requererá continuidade das ações públicas e da sociedade em geral, estimuladas na medida inversa da redução de casos, e propostas adequadas. Visando constituir sistema de Vigilância sensível e específico, sobretudo em períodos endêmicos, propõe-se que o componente clínico sentinela deve integrar tanto a assistência emergencial aberta preconizada, detectando casos graves – ponta do iceberg, como serviços de referência para doenças febris agudas, definindo diferentes formas clínicas e propiciando confirmação diagnóstica. Em regiões estratégicas, paralelamente, inquéritos sorotipicos amostrais, embora complexos, devem ser buscados, avaliando imunidade e suscetibilidade de grupos etários aos sorotipos circulantes, estimativa de casos subclínicos e alcance do Sistema de Vigilância e Controle.

Palavras-chaves: Dengue. Vigilância clínica. Inquéritos sorológicos. Endemia. Controle.


ABSTRACT

Interaction between clinical infection, vector, and population serotype immunity defines dengue epidemic risk. An endemic-sporadic epidemiological situation is an acceptable control target in metropolitan regions deficient in urban upgrading, sanitation, and health agents’ access to residences, besides low residual power of biological insecticides and social mobilization problems. Surveillance requires continued action by government and society (particularly when incidence decreases) and adequate proposals. To establish a sensitive and specific surveillance system for endemic periods, the authors propose the sentinel clinical component as part of emergency care (detecting serious tip-of-the-iceberg cases) and reference services for acute febrile diseases, defining clinical forms and providing diagnostic confirmation. Although complex, sample serotype surveys should be conducted in strategic areas, evaluating: immunity and susceptibility of age groups to circulating serotypes; estimation of sub-clinical cases; and Surveillance and Control System reach.

Key-words: Dengue. Clinical surveillance. Serological surveys. Endemic. Control.


 

 

A Cidade do Rio de Janeiro entrou no verão de 2003 – 2004 liberta de um vaticínio: de que seria assolada neste ano por outra e ainda mais grave epidemia de dengue de sua história; além do provável ingresso do novo tipo de vírus que ainda não temos, o dengue 4. Superando a do verão de 2002, que cursou com cerca de 140.810 casos e 63 óbitos confirmados10, a epidemia anunciada para 2003 atingiria com gravidade também as crianças, que seriam enfim e então mais sujeitas ao dengue hemorrágico. Tais considerações, propaladas nos meios acadêmicos, entre autoridades de Saúde e na mídia, apostavam, sobretudo, na deficiência crônica das medidas de controle evidenciada na evolução histórica das epidemias de dengue, desde a primeira, em abril de 19866, e mais intensas a cada introdução de novo sorotipo.

A sucessão de epidemias, intercaladas por períodos de pequeno número de casos denominados períodos interepidêmicos, explica esta expressão de uso comum entre autoridades técnico-científicas e profissionais da Saúde, inclusive ligados ao controle do dengue. Conforma-se assim a idéia de epidemias inexoráveis, enquanto não for eliminado o vetor da doença, o Aedes aegypti.

Por outro lado, cabe perguntar sobre a taxa de subnotificação do período endêmico e admitir a hipótese de que seja proporcionalmente mais elevada que durante epidemias. Hoje admite-se que, reduzidos os níveis de infestação predial pelo vetor a menos de 1%9 a doença estaria controlada e, portanto, não ocorreriam mais surtos de dengue nessa situação (anteriormente a taxa arbitrada era até 5%2 ). Mas, não é possível afirmar que casos esporádicos da doença e infecções inaparentes deixem de ocorrer. Além disso, admitir como axiomático determinado nível de infestação vetorial versus controle da doença, é relegar a multicausalidade desse processo, sem dúvida dependente de níveis de correlação de diversos parâmetros como grau de imunidade da população, pirâmide etária, aglomeração habitacional, entre outros, além do mais óbvio e até hoje mais fácil de verificar, a densidade vetorial.

E, o que dizer, com segurança, sobre freqüências de infestações vetoriais algo mais altas, como é o caso atual do município do Rio de Janeiro12 com média de 5,76%*, onde, paralelamente, o número mensal de casos notificados vem decaindo continuamente, de 350 em janeiro de 2003 a 92 casos em janeiro e 26 em fevereiro de 200411), sem registro de forma grave ou óbito. E também sem que se conheçam outros parâmetros clinicoepidemiológicos, como o nível imunitário de grupos urbanos, ou a proporção de casos suspeitos de dengue entre outras doenças febris agudas?

Estamos assim diante da situação epidemiológica de dengue endêmico, na cidade do Rio de Janeiro. E podemos caminhar para a forma endêmico-esporádica, ou esporádica da doença. Esta, como uma meta aceitável de controle para determinadas regiões de grandes metrópoles7, que se caracterizam pela urbanização desordenada, insuficiência de saneamento básico, baixa capacidade de mobilização social, dificuldade de acesso às residências pelos agentes de controle do vetor7 5, somando-se a isso a resistência do A. aegypti aos inseticidas de maior ação residual (como o themephos/abate)1 4, substituídos por inseticida biológico (Bacillus thurigiensis, Var israelensis – BTI) cuja duração de ação estaria entre 2 a 3 semanas3, sem descartar melhores perspectivas de inovações tecnológicas.

A situação endêmica requer, de um lado, a continuidade das ações de controle vetorial, públicas e da sociedade em geral, a serem progressivamente estimuladas na medida inversa da queda das notificações. E de outro, novas propostas conceituais e práticas de vigilância clínica de casos suspeitos de dengue entre nós, ou seja, de acordo com a realidade e possibilidades de cada região. No mesmo contexto, devem ser valorizados igualmente os diferentes componentes da Vigilância: clínico, virológico, entomológico e epidemiológico propriamente dito. Este com a função de monitorar os demais e estreitar as relações entre essas atividades. Mas é essencial admitir o papel da vigilância clínica que, bem organizada e apoiada por uma rede de diagnóstico laboratorial de fácil acesso, constitui não somente a porta da entrada do Sistema de Vigilância, mas, ao mesmo tempo, pode representar um indicador indireto do controle vetorial para um dado padrão imunológico de população. Daí a necessidade de se investir na determinação e monitoramento de dados (taxas), selecionados como principais, que interagem continuamente: a infecção clínica (como a fonte considerável do vírus), o vetor e a imunidade sorotípica da população, o óbvio tripé, desconhecido. Admitindo os graus variáveis de interdependência dessa relação triangular, não é possível afirmar que determinada taxa de infestação vetorial é indicativa de risco de epidemia por dengue, ignorando a co-participação das duas outras bases do tripé de acordo com o sorotipo viral.

Gubler2, há mais de uma década, contrapondo-se à vigilância reativa aos processos epidêmicos instalados, considera a necessidade primordial de vigilância ativa durante os períodos inter-epidêmicos, ou de transmissão esporádica ou silenciosa (quando) não se identificam clinicamente as infecções por dengue. Admite o desconhecimento ou desvalor clínico dado às formas mais freqüentes de dengue como doença febril leve, não diferenciada e inespecifica, sobretudo nas crianças e durante os períodos de escassa atividade ou de transmissão esporádica; e ressalta a importância da vigilância do aumento de casos febris de causa interminada e síndromes víricas fatais. Entretanto, categorizando as ações, conclui que a vigilância virológica ativa é a mais importante. No entanto, é preciso reiterar a obviedade de que, necessariamente, na organização do Sistema de Vigilância de doenças, o componente clínico precede a ação laboratorial e a epidemiológica e, se não estiver devidamente preparado e igualmente motivado, sobretudo nos períodos endêmicos, não proporcionará uma notificação adequada, e muito menos poderá colaborar com o envio, como propõe aquele mesmo autor2, de amostras de sangue de todos os pacientes com doenças semelhantes ao dengue e de todos os que apresentem qualquer tipo de manifestação hemorrágica, encefalite viral ou síndrome viral que evolua ao óbito, e ainda de remessa semanal sistemática de amostras de sangue de alguns pacientes com síndrome viral, colhidas durante a fase aguda.

O planejamento da vigilância clínica do dengue deve visar ao aumento da sensibilidade e ao mesmo tempo da especificidade do diagnóstico das doenças febris agudas que constituem os diagnósticos diferenciais, independentemente da gravidade com que se apresentem; assim, dispensando igual atenção às formas brandas ou moderadas daqueles quadros. E para começar, otimizando as especificidades da rede de saúde a fim de criar estratégias complementares de atendimentos sentinelas.

A estratégia atual preconiza como sentinela a forma de assistência emergencial e aberta, com base na quantidade de atendimentos. Entretanto, tais serviços, por suas características – de arcar com enorme número e variedade de casos, nas diversas especialidades clínicas e cirúrgicas – privilegiam, como é de se esperar, a busca da confirmação diagnóstica dos mais graves associada a mudança de conduta e prognóstico. No entanto, para a Vigilância, os casos graves de dengue, representando a ponta do iceberg, serão notificados quando as formas brandas da doença já forem freqüentes embora pouco visíveis, ou seja, diante de um já provável curso epidêmico que poderia definir-se antes.

Uma outra estratégia complementar, de consultas sentinela, deveria ser feita sem grandes dificuldades, por serviços especializados pré-existentes uma vez organizados nesse sentido. Correspondendo ao que se consideraria como abordagem qualitativa no aprofundamento do caso dirigida às doenças febris agudas, se basearia em protocolo incluindo a exploração de todo o leque de diagnósticos que comportam, podendo eventualmente equivaler a representação amostral.

Ambas as estratégias constituiriam modalidades de vigilância-sentinela sensíveis e específicas para as diferentes formas clínicas de dengue, sobretudo em períodos endêmicos. Isso porque, enquanto os serviços gerais que dispõem de setores de emergência aberta teriam maior chance de captar as formas mais raras da doença, como de dengue hemorrágico e outras formas graves, os especializados identificariam principalmente os quadros mais comuns, representados pelos casos brandos e muitas vezes menos característicos, possivelmente os menos reconhecidos ou confirmados, diagnosticados em geral como viroses. Em ambas as formas de Vigilância, as ações específicas devem envolver a equipe de Saúde dirigidas não somente à coleta inicial de anticorpos, incluindo isolamento viral, mas ao retorno do paciente para a segunda coleta, de identificação da elevação de anticorpos após a cura clínica, o que é mais difícil nas Emergências.

Outro instrumento essencial de vigilância que se deveria buscar utilizar no período endêmico, seria inquéritos sorotípicos amostrais, utilizando a rede de saúde. A dosagem de anticorpos por metodologia específica (técnica de neutralização) que, embora mais complexa, está a requerer efetiva descentralização por estado, pode propiciar avaliação da imunidade e suscetibilidade da população ao dengue e identificação dos grupos etários vulneráveis aos diferentes sorotipos circulantes; permitir uma estimação de taxas de casos subclínicos, difíceis muitas vezes de prever 8 13; e avaliar o alcance da vigilância epidemiológica instituída, com base na comparação entre prevalência de anticorpos, freqüência de notificações e informações clínicas sobre dengue. Essas análises, realizadas segundo distribuição geográfica, faixas etárias e outros aspectos demográficos e clínicos, podem trazer diversos tipos de contribuição, sobretudo orientar medidas preventivas e assistenciais. Por sua complexidade, porém, em processos pilotos, requereriam financiamento específico, padronização, monitoramento e avaliação pelo nível federal, tal como o LI rápido, e parceria obrigatória entre instituições de referência, gestores da Saúde e rede selecionada de serviços clínicolaboratoriais de referência. Esta última responsável por seleção aleatória de alícotas de sangue coletado na rotina de atendimento, acondicionamento e envio das amostras.

É imperioso lembrar sempre que o maior desafio a ser enfrentado coletivamente na endemia de dengue é o de manter a população motivada para o combate ao Aedes aegypti. E particularmente atentos os clínicos quanto ao possível diagnóstico, conscientes de sua participação específica e efetiva como sentinelas individuais da vigilância epidemiológica. Mas será exatamente nesses tempos de ocorrência endêmico-esporádica da doença que se poderá testar, ou demonstrar, a competência das autoridades sanitárias, a essencialidade das políticas e gestões intersetoriais entre essas e as autoridades de educação e meio ambiente, o papel da pesquisa na promoção da saúde, o nível de conscientização da população e a contribuição cidadã da mídia como o instrumento auxiliar mais poderoso desse estímulo a todos os grupos sociais.

 

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 Endereço para correspondência
Dra. Keyla Belízia Feldman Marzoch
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Recebido para publicação em 26/32004
Aceito em 11/6/2004