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Infectologia velha e infectologia nova: concepção extravagante

DOI: 10.1590/S0037-86822004000600018


Senhor Editor:

Até o início dos anos cinqüenta do século passado a Infectologia, no Brasil, não fazia parte do elenco de atividades médicas. Pouquíssimos profissionais tinham alguma vinculação com assistência específica relacionada com doenças infecciosas e parasitárias. Lembro-me de determinados pioneiros, que se dedicavam à Clínica Médica mas mostravam interesse pelas enfermidades citadas, sem especialização particularizada. A propósito, julgo correto mencionar Arary da Cruz Tiriba com Jair Xavier Guimarães, em São Paulo, e José Rodrigues da Silva no Rio de Janeiro. Também, nesse contexto, rememoro que um dos meus mais destacados mestres dizia-me claramente que concordava com a ação de clínicos com preparo algo especial quanto aos males causados por microrganismos ou parasitas.

A partir daquele momento ficou patente que se tornava conveniente conceder nova feição à área antes quase nada individualizada. Pessoalmente passei a defender mudança da situação e comecei a atuar só como infectologista.

Infectologia é o ramo da Medicina que constitui concreta especialidade, englobando em seus desiderados tarefas exclusivas pertinentes a atendimento aos acometidos de doença infecto-parasitárias, sempre destinando atenção sobretudo a componentes de naturezas etiológica, epidemiológica, diagnóstica, terapêutica e preventiva. Prevê outrossim a execução de investigações científicas correlatas, de preferência aplicadas, e ajudas a comunidades.

Progressivamente, em seguida aos exemplos advindos de poucos baluartes, houve crescimento da quantidade de novos adeptos e variados acontecimentos permitiram consolidar a crescente arregimentação de infectologistas nacionais. Entre essas iniciativas valorosas cito, como ilustrações, iniciativas implementadas: cursos de pós-graduação; Sociedades Científicas; Congressos, simpósios e promoções congêneres para atualizações, além do relato de produtivas pesquisas; concursos em setores públicos; título de especialista atribuído pela Associação Médica Brasileira; Disciplina ou Departamento em instituições universitárias; boletins e revistas atinentes só à especialidade; livros pertinentes. Então, hoje há decisivamente a Infectologia brasileira, que inclusive chegou à Pediatria.

Verificou-se o arrefecimento de doenças em virtude de motivos variados e, mormente, como decorrência de vacinações. Contudo despontaram outras, como a doença de Lyme, a febre purpúrica brasileira, a angiomatose bacilar, ao lado da percepção de que as infecções pelos vírus B e C da hepatite têm dimensões bem superiores às tidas como bastante prevalentes. Vieram ocorrências epidêmicas: doença meningocócica, cólera, dengue, aids e leptospirose, referidas só para não deixar de destacá-las. Devo aduzir a obrigatoriedade de manter atenção no que tange às doenças emergentes, ampliando a dimensão do que cabe a infectologistas.

Não bastasse tudo isso, processou-se agregação de mais tarefas: a coordenação e supervisão do uso de antimicrobianos ou de imunobiológicos; prestação de cuidados de naturezas diagnóstica e terapêutica a imunodeprimidos, a enfermos com complicações infecciosas pós-cirúrgicas ou a quem recebeu órgãos por transplantes; dedicação a assuntos referentes às infecções hospitalares.

Portanto, a abrangência da Infectologia no Brasil cresceu sensivelmente por causa de missões acrescidas de forma paulatina, sensata e judiciosa. Configurado esse panorama, preocupado notei que há quem proponha, talvez para conseguir simplória notoriedade, fatiamento da especialidade em Infectologia velha e Infectologia nova. É idealização extravagante, chegando a parecer que atenção relativa às moléstias qualificadas como tropicais afigura-se desprimorosa, antiquada e medieval. Novas tarefas não são substrato para inventar separação criteriosamente indefensável.

As leishmanioses mucocutânea e visceral estão tendo marcante disseminação. A esquistossomíase mansônica ficou melhor combatida através de tratamentos simples e eficazes, mas continua por aí. Para a doença de Chagas é imperiosa dedicação para coibir a transmissão do Trypanosoma cruzipor mecanismos alternativos. Mesmo que se afigurem relevantes esses exemplos parciais, peço para que não seja esquecida a malária, de difícil controle e a mais proeminente doença infecciosa no Brasil.

Como especulação anoto que para que múltiplas enfermidades etiologia infecciosa encontra-se provada ou suspeitada: temor de Burkitt, sarcoma de Kaposi, câncer do colo do útero, paraparesia tropical, leucemia, obesidade, diabetes do tipo 1 e esclerose múltipla. Então, logo mais surgirá a intenção de criar a Infectologia novíssima.

Infectologistas: o país precisa de vocês, atualizados e aguerridos, labutando nos setores vocacionalmente preferidos, representando mero circunlóquio o nada construtivo fatiamento comentado.

Convém não esquecer as histórias de cientistas tropicalistas, que tiveram honrosas repercussões em nível internacional. Foram inclusive paradigmas para a evolução científica nacional. A respeitadíssima Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo divulgou recentemente comentário segundo o qual o Brasil mantém pioneirismo na investigação e na prevenção de doenças típicas de paises pobres. Esses estilo e exemplo obrigatoriamente persistirão, a fim de aprimorar conhecimentos ainda insuficientes sobre aspectos imunológicos, patogenias e tratamentos, ainda insatisfatórios no que concerne a males ainda vigentes na presente epidemiologia tropical.

 

Vicente Amato Neto
Laboratório de Investigação Médica Parasitologia do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

 

 

 Endereço para correspondência
Prof. Vicente Amato Neto
Laboratório de Investigação Médica-Parasitologia/DMI/HC/FM/USP
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar 470
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Tel: 11 3066-7042, Fax: 11 3081-8144
e-mail:amatonet@usp.br

Rebido para publicação em 8/4/2004
Aceito em 21/5/2004