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Malária cerebral no Ceará: relato de caso

Marcus Davis Machado BragaI; Geritza Chagas AlcântaraII; Cristiane Nobre da SilvaIII; Cyntia Gioconda Honorato NascimentoIV

IDepartamento de Patologia e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE IIHospital Geral de Fortaleza, Fortaleza, CE IIIHospital Albert Sabin, Fortaleza, CE IVAcadêmica de medicina na Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE

DOI: 10.1590/S0037-86822004000100014


RESUMO

A partir de um caso de malária cerebral no Ceará observa-se a possibilidade dessa ocorrência em zona não endêmica, secundária a retardo diagnóstico. Além da gravidade da doença, incomum para a espécie determinada, Plasmodium vivax, verifica-se a possível existência de infecção mista e sua potencial disseminação na presença do vetor.

Palavras-chaves: Malária cerebral. Malária atípica. Malária importada. Malária no Ceará. Brasil


ABSTRACT

Starting from a case of cerebral malaria in Ceará, the authors get the attention for that possibility of this occurrence in no-endemic zone, due to the retard of the diagnosis. Besides the serious implications of the disease, uncommon for this determined species, Plasmodium vivax, it is observed the probable existence of mixed infection and the potential dissemination with the presence of the sand fly transmitter.

Key-words: Cerebral malaria. Atypical malaria. Imported malaria. Malaria in Ceará. Brazil.


 

 

Malária é uma doença tipicamente tropical que necessita de todos os fatores envolvidos no seu ciclo para se manter endêmica. Geralmente, isto acontece próximo às florestas, onde reside o vetor, em zonas com a presença de pessoas infectadas, que permitem a persistência do parasito em seu reservatório humano7. No Brasil, a malária é endêmica em áreas como a Amazônia onde se encontram presentes várias espécies de vetores. Em alguns estados nordestinos litorâneos, como o Ceará, é encontrado um vetor adaptado à maior salinidade do litoral, o Anopheles aquasilis. O menor acesso do mosquito a hospedeiros, contudo, mantém a região longe da endemia.

Com os maiores deslocamentos migratórios ou mesmo turísticos ocorridos nos últimos anos, notifica-se constantemente casos de doenças importadas a partir de zonas endêmicas vizinhas. Tais casos geralmente são identificados e tratados pelos órgãos competentes, impedindo a disseminação e a ocorrência de formas mais graves. Os profissionais de saúde destas regiões, entretanto, dificilmente têm contato com estes casos e desconhecem o potencial explosivo da patologia, seja em termos de acometimento individual ou coletivo. Desta forma, é grande a possibilidade de ser esquecido, no atendimento médico diário, o diagnóstico diferencial com malária sendo, assim, conveniente um alerta para o fato, por isso a importância desse caso.

 

RELATO DE CASO

O paciente SFB, de 25 anos, militar, natural de Pinheiros, no Maranhão, procedente de Boa Vista, Roraima. Sem antecedentes de malária, chegou à Fortaleza com queixa de febre e colúria e história de tratamento antimicrobiano prescrito para infecção urinária, no início de fevereiro de 1997, por médico da região de procedência. Reavaliado no Ceará, em 4 de março, foi feito o diagnóstico presuntivo de hepatite, tendo em vista a severa adinamia, anorexia, colúria, diarréia pouco expressiva e dores musculares. Foi instituída medicação sintomática e colhido material para avaliação laboratorial. Antes dos resultados dos exames solicitados, a febre se elevou substancialmente, com calafrios, prostração, sonolência e desorientação. No dia 11 de março, foi examinado no Corpo de Bombeiros, apresentando-se acentuadamente pálido, com hepatomegalia, espaço de Traube ocupado e doloroso, além de sintomatologia secundária a acometimento do SNC, como desorientação, delírios, torpor e prostração. Apresentava diarréia, pressão arterial de 110x70mmHg, taquicardia e febre de 39,8ºC. Foi encaminhado ao hospital de doenças infecciosas de Fortaleza com suspeita de malária, confirmada pelo esfregaço de sangue periférico, sem referência à espécie de Plasmodium. Nesse momento apresentava hipopotassemia com [K+]=3,2mg/dl, [uréia]=57mg/dl e [creatinina]=1,5mg/dl. Admitido em UTI, na mesma noite recebeu quinina endovenosa e oxigênio. Apresentou melhora expressiva no dia seguinte, apesar do recrudescimento da diarréia e náuseas. Houve regressão quase integral do quadro clínico em quatro dias, quando lhe foi dada alta hospitalar. Após esta, persistiram anorexia e dores musculares, sendo-lhe prescrito vimbramicina durante cinco dias. Um mês depois, após esforço físico importante, os sintomas voltaram, sem desorientação ou prostração. Realizado esfregaço de sangue periférico, diagnosticou-se Plasmodium vivax. Foi instituído, então, tratamento com cloroquina e primaquina por 14 dias. Logo o paciente se tornou assintomático, permanecendo sem queixas por três meses, quando, outra vez após exercício extenuante, os sintomas periféricos ressurgiram. Apresentava, nesse momento, pressão arterial de 110x75mmHg, pulso de 76ppm, sem outras alterações evidentes ao exame clínico. A pesquisa de sangue periférico voltou a revelar P. vivax e novamente lhe foram prescritos primaquina e cloroquina. Nos primeiros dias após o início do tratamento, regressou a seu estado natal, onde lhe foi prescrito mefloquina. Desde então permanece assintomático.

 

DISCUSSÃO

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde a zona endêmica da malária atinge cerca de 2,2 bilhões de pessoas no mundo, abrangendo 90 países11 12 13, mantendo-se endêmica na presença do vetor, o mosquito Anopheles. No Brasil atinge todo o Norte, estendendo-se ao Maranhão ocidental, sendo exportados, ocasionalmente, alguns casos para outras regiões, sendo 99% deles na Amazônia Legal5. No Ceará, foram notificados em média 87 casos anuais entre os anos de 1997 a 2001, com um último caso autóctone em 1996, até o reaparecimento, em surto importante, em 2002 (Tabela 1).

 

 

Dentre suas formas graves, a malária pode acometer o cérebro com freqüência entre 0,01% e 16% dos casos9. A disfunção cerebral pode apresentar-se com qualquer grau de redução da consciência, delírio, embotamento mental ou anormalidades neurológicas, apresentando um bom prognóstico desde que o tratamento não seja retardado5. Assim, o paciente não evolui para o coma profundo, exigido por Warrell et al10 na rigorosa classificação convencionada de malária cerebral. Tosta et al9, entretanto, já definem o acometimento cerebral como alterações ao nível de consciência, confusão mental, desorientação, prostração e fraqueza extrema, que podem evoluir para o coma. Charbase et al1 referem a existência de formas graves pelo Plasmodium vivax (febre terçã benigna) apenas nos casos em que não foi possível excluir com certeza a infecção mista. Sachdev6, entretanto, já sugere a etiologia por infeção pelo P. vivax. Islam4, no Paquistão, descreveu um caso de complicação cerebral devido ao Plasmodium vivax, assim como Tilluckdharry 8, associou a infecção a um quadro de psicose.

No presente caso, infelizmente, por ocasião do diagnóstico de malária cerebral, apenas foi evidenciado o gênero do parasito. Somente com a recidiva é que a espécie, P. vivax, foi identificada. Provavelmente a recidiva da doença deu-se a partir de formas exoeritrocíticas, hipnozoítas, freqüentes nesta espécie de parasito3, no qual a resistência ao tratamento não é comum5. O acometimento cerebral, no entanto, é tipicamente relacionado ao P. falciparum, por sua maior capacidade de proliferação, agregação hemática e de liberação local de TNF – fator de necrose tumoral2. Neste estudo, se a forma grave foi provocada por infecção mista ou exclusivamente. pelo P. vivax, não foi possível precisar. A persistência da infecção não adequadamente tratada, possibilitaria o desenvolvimento de uma alta densidade parasitária de P. vivax, levando a produção de citocinas, a níveis mais elevados, que poderiam se relacionar com a alteração cerebral2. Contudo, a importância deste caso reside na dificuldade da doença ser diagnosticada em áreas não endêmicas, por conta de sua raridade, permitindo o avançar clínico até formas graves e incomuns, como o acometimento cerebral, seja qual for o tipo de espécie infectante. Vale ressaltar, ainda, que a existência do mosquito Anopheles aquasalis no estado do Ceará7, transforma-o numa zona potencial para a disseminação da endemia, se os casos importados não forem contidos rapidamente, tal como está acontecendo no presente ano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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9. Tosta CE, Lopes ER, Chapadeiro E. Patologia das principais doenças tropicais no Brasil – Malária. In: Lopes ER, Chapadeiro E, Tafuri WL (eds) Bogliolo L Patologia. 6ª edição, Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, p. 1250-1263, 2000.         [ Links ]

10. Warrell DA, Loareesuwan S, Warrell MJ, Kesemsarn P, Intaraprasert R, Bunnag D, Harinasuta T. Dexamethasone proves deleterious in cerebral malaria. A double-blind trial in 100 comatose patients. The New England Journal of Medicine 306:313-319, 1982.         [ Links ]

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 Endereço para correspondência
Prof. Marcus Davis M. Braga
Departamento de Patologia e Medicina Legal/FM/UFC
Rua Alexandre Baraúna s/n, Porangabuçu
60430-160 Fortaleza, CE
Tel: 55 85 288.8301
E-mail: bragamarcus@hotmail.com.br

Recebido para publicação em 12/11/2002
Aceito em 13/11/2003