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O paradigma Carlos da Silva Lacaz

Vicente Amato Neto; Jacyr Pasternak

DOI: 10.1590/S0037-86822003000200018


 

 

Paradigma, de acordo com os dicionários, é modelo, padrão. Portanto, o Professor Carlos da Silva Lacaz, indiscutivelmente, é paradigma. Além disso, mesmo depois de ter morrido continuará sendo, porque constitui exemplo persistente como decorrência das expressivas virtudes que sempre marcaram suas ações, nos diversos tipos de atividades que exerceu. Ainda mais, como chefe de família e cidadão invariavelmente procedeu de maneira plenamente imitável.

Como docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo foi excelente didata e invariavelmente respeitou, com sucesso, as três missões básicas que norteiam, conforme é correto e aconselhável, as ações dos que ocupam tal posição: formou e aprimorou alunos nos níveis de graduação e pós-graduação, como também dedicou-se a estagiários ou bolsistas, reiteradamente demonstrando qualidade, com esmero; buscou novos conhecimentos através da pesquisa científica; proporcionou múltiplos serviços à comunidade por meio de providências de várias ordens, como por exemplo assistenciais, educativas ou vinculadas à saúde pública e à ética.

No campo das pesquisas interessou-se especialmente pelas investigações aplicadas, capazes de conduzir a esclarecimentos mais rápidos e bastante úteis sobretudo quanto às avaliações epidemiológicas, diagnosticas ou terapêuticas. Como cientista, nunca descuidou do ensino e do apoio à comunidade, valorizando estilo que convém a docentes de Faculdades de Medicina, porquanto os que se consideram só pesquisadores, competentes ou não, devem sediar-se em instituições específicas, desvinculadas do preparo de médicos que exercerão trabalhos explicitamente no contexto da profissão.

Com Floriano Paulo de Almeida deu início à Micologia Médica no Brasil, antes absolutamente incipiente e improvisada, tendo apoiado o desenvolvimento científico em alergia, concedendo estrutura para as realizações pioneiras de Ernesto Mendes. Outrossim, da mesma forma, amparou o começo da evolução da Imunologia Médica no Brasil.

Idealizou o Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e adotou as providências básicas para implantá-lo. Paralelamente ao que esse órgão concretizou e vem efetivando rememoramos que suscitou imitações no país. Assim, pôde contribuir para o advento de melhorias em setor indispensável, se consideradas as doenças transmissíveis abundantes no território nacional.

Quando ocupou o cargo de Secretário de Higiene, da Prefeitura do Município de São Paulo, inventou o prestimoso Centro de Controle de Zoonoses, depois ampliado e até hoje muito benéfico.

Constantemente ativo, inquieto e movido por incansável vontade de estipular progressos, teve a brilhante iniciativa, quando Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, de criar os Laboratórios de Investigação Médica do Hospital das Clínicas, que faz parte da Faculdade. Haviam decidido transferir o Curso Básico dessa escola para o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, ficando o lindo, tradicional e querido prédio dela desativado, desabitado. Grotescamente, pretenderam ceder o imóvel para a Secretaria da Segurança Pública. Manifestou-se, então e novamente, a índole criativa do Professor Lacaz, traduzida pela fundação, oficialização e regulamentação dos citados Laboratórios. O prédio foi felizmente salvo e o Hospital das Clínicas recebeu eficiente componente adicional. E essa majestosa realização, por si só excelsa marcadora de atividade universitária, figura como apenas uma das obras do Professor Lacaz.

Dois acontecimentos causaram intensas mágoas ao Professor Lacaz: a mudança do Curso Básico da Faculdade de Medicina para o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo e a geração do Curso Experimental da referida Faculdade. O Curso Básico contou sistematicamente com a participação de luminares docentes e sempre respeitou currículo conectado com a real formação de médicos, fazendo prevalecer ensinamentos fundamentais, coerentes com o bom preparo profissional. A alteração preocupou o Professor, que não enveredou por ela, diante da desestruturação de algo valioso e de troca por responsabilização concedida a docentes não especializados, intencionados a divulgar generalidades, comumente sem laços particulares com a preparação de médicos. Sobre a segunda tristeza lembramos que ela teve relação com a inauguração do Curso Experimental, como fruto de alguns motivos e, mormente, porque parecia ter intenção de confronto, inclusive interpretado pejorativamente com o Curso Tradicional, associadamente ao ar de novidade, configurando eventual crítica a sistema em vigor. Com o passar do tempo, pôde-se conceder razão ao Professor Lacaz no que tange à troca pelo Instituto de Ciências Biomédicas: sucedeu clara diferença em face ao desempenho pior da inovação; acerca do Curso Experimental valeram resmungos do Professor: ele foi extinto, apesar de não ter havido avaliação de valores quiçá a ele atinentes.

O Professor Lacaz afigurou-se ardoroso cultor da História da Medicina, certamente para manter em cena acontecimentos e personalidades ilustrativas, para estimular comportamentos dignificantes no exercício da Medicina, presentemente cada vez mais escassos. Frisamos que nessa área de atuação o Professor alicerçou o Museu Histórico da Faculdade de Medicina, que passou a ter o nome dele. Em acréscimo ajudou a fundar e manter entidade nacional dedicada a esse ramo cultural que se devota a conhecimentos de caráter histórico.

Quando faleceu, o Professor Lacaz, emérito na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, era chefe do Laboratório de Investigação Médica – Micologia do Hospital das Clínicas e do Laboratório de Micologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo; aí, aposentado e idoso labutava proficuamente, tendo podido prestar mais um obséquio significativo: julgaram apropriado transformar o órgão em Instituto Especializado na estrutura da Universidade de São Paulo, talvez para obter aprimoramento administrativo, funcional e regulamentar, mas a proposição só ganhou acatamento quando acoplado o magnífico “curriculum vitae” do Professor, ao lado de informes pertinentes a outros pesquisadores associados também rotulados como inativos na ambitude universitária.

Este é mais um tributo que dedicamos ao Professor Lacaz, quando a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo tornou-se menor sem ele, ficando a cargo de remanescentes o encargo de compensar tão grande perda. Porém, a Universidade de São Paulo recebeu mais um símbolo, que com outros consagrados estimula atitudes que manterão e aumentarão a pujança dela.