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Presença extra-intestinal de cistos unizóicos de Isospora belli em paciente com SIDA. Relato de caso

Jacob K. FrenkelI; Márcia Benedita de Oliveira SilvaII; João Carlos SaldanhaII; Mario Leon de Silva-VergaraII; Dalmo CorreiaII; Cristina Hueb BarataII; Eliane Lages SilvaII; Luis Eduardo RamirezII; Aluízio PrataII

IUniversity of New Mexico, Albuquerque, NM IIFaculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Uberaba,MG

DOI: 10.1590/S0037-86822003000300014


RESUMO

Descreve-se a presença de cistos unizóicos de Isospora belli em linfonodos mesentéricos e de gametócitos no epitélio da vesícula biliar de um paciente brasileiro de 26 anos de idade, com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida que recebeu tratamento, por diversas vezes, com sulfametoxazol-trimetoprim. Discute-se a importância dos cistos teciduais de I. belli como possíveis focos de resistência do parasita e a associação destes a episódios de recidivas da infecção mesmo após tratamento com medicação anticoccídios.

Palavras-chaves: Isospora belli. Cistos unizóicos. SIDA.


ABSTRACT

This report describes the presence of Isospora belli unizoic cysts in mesenteric lymph nodes and of gametocytes in the gallbladder epitelium of a 26 year-old Brazilian male patient with Acquired Immune Deficiency Syndrome. This patient had received treatment for several times with sulfamethoxazole-trimethoprim. It is discussed the significance of I. belli tissue cysts as possible foci of resistance of the parasite and their association with the infection relapse even post-treatment with anticoccidian medication.

Keywords: Isospora belli. Unizoic cysts. AIDS.


 

 

Isospora belli é um coccídio parasita humano, cuja transmissão tem sido considerada exclusivamente pela via fecal-oral, sendo o homem seu único hospedeiro. Os sintomas da infecção, geralmente autolimitada, em pacientes imunocompetentes incluem diarréia, esteatorréia, cefaléia, febre, dor abdominal, vômito, desidratação e perda de peso. Em pacientes infectados com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e naqueles com a síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA), a infecção por Isospera belli apresenta sintomas semelhantes sendo a diarréia mais fluida, com padrão secretório e curso prolongado causando desidratação intensa e, na maioria das vezes, necessitando de hospitalização. Tem sido relatada a presença de cistos unizóicos extra-intestinais em linfonodos mesentéricos, baço e fígado de alguns pacientes com SIDA, possivelmente podem estar relacionados com recrudescência observada com freqüência em pacientes imunossuprimidos 5,8. O caso a seguir descrito é o primeiro em paciente brasileiro.

 

RELATO DO CASO

WLT, 26 anos de idade, masculino, solteiro, natural de Araxá e procedente de Uberaba, MG, Brasil. Paciente com diagnóstico de SIDA desde 1997, quando apresentou herpes zoster, neurotoxoplasmose e diarréia por I. belli. Recebeu tratamento específico para I. belli, com melhora da sintomatologia, tendo sido iniciada a terapia anti-retroviral com zidovudina e didanosina , em uso irregular durante dois anos.

Em 1999, foi feito o diagnóstico de tuberculose pulmonar, tratada durante seis meses. Neste período foi introduzida a terapia anti-retroviral com lamivudina, estavudina e efavirenz. Em fevereiro de 2001, foi internado com síndrome diarréica com quatro dias de evolução, causada por I. belli, sendo prescrito sulfamethoxazol-trimetoprim, com regressão dos sintomas. Este mesmo quadro foi observado 30 e 120 dias após sendo, em ambas ocasiões, detectada a presença de I. belli e re-introduzido o tratamento específico. Nesta época a contagem de linfócitos T foi a seguinte: CD4: 208 células/mm3, CD8: 1657 células/mm3 e relação CD4/CD8: 0,13. Após novo episódio de síndrome diarréica em setembro de 2001, mesmo tendo recebido sulfamethoxazol-trimetoprim, a excreção de oocistos de I. belli persistiu. Foi suspensa a reposição de acido fólico e complexo B, considerando que suas formulações poderiam conter ácido paraminobenzóico que é um antagonista do sulfametoxazol-trimetoprim, sendo observada a negatividade de oocistos nas fezes.

Em outubro de 2001, foi internado com história de dor abdominal, vários episódios de diarréia e vômitos, desidratado, tensão arterial 80X40 mmHg, freqüência cardíaca de 105 sístoles por minuto, hemoglobina11g%, hematócrito 28,7%, leucócitos 6.910/mm3, plaquetas 73.000/mm3, creatinina 2mg%, proteínas totais 4,9g% (1,8g% de albumina), cálcio 6,6meq/l, potássio 1,2meq/l, sódio 133meq/l, cloro 106meq/l, glicemia 71mg%. Durante esta internação, persistiu o quadro diarréico, com importante perda de peso, anorexia e vômitos. Os hemogramas de controle mostraram pancitopenia severa e contagem de linfócitos T CD4 de 53 células/mm3. No vigésimo dia de internação, apresentou insuficiência respiratória, confusão mental, acidose metabólica e choque séptico, evoluindo com parada cardiorespiratória irreversível. O óbito foi atribuído à septicemia por Staphylococcus aureus. A cultura da ponta de cateter venoso isolou Staphylococcus aureus multidroga resistente.

Exame histopatológico. Foram examinados amostras de esôfago, duodeno, íleo, colon, apêndice e vesícula biliar, sendo encontrados gametócitos (macrogametócito e microgametócito) no epitélio da vesícula biliar (Figuras 1bc) e cistos unicelulares em três linfonodos, de origem mesentérica (Figuras 1a2abc3abc).

Os seis cistos tinham morfologia irregular, três mediam 10,3×7,8, 10,9×4,7 e 11,9×10,9mm, com a parede usualmente fina, mas podendo variar de 0,7 a 1,7mm de espessura (Figuras 3abc). O único zoíto dentro do cisto foi bem demonstrado após coloração por hematoxilina-eosina (HE). Os outros três mediam 7,2×3,2, 7,6×2,6 e 7,8×2,8 mm. Um único núcleo aparece vesicular e o citoplasma corado uniformemente de vermelho. A área total do parasita variou de 16,0 a 17,9mm2.

Após coloração pelo ácido periódico-Schiff (PAS) e por HE, foram vistos grânulos intensamente corados de vermelho formando 1 a 3 grupos, 2 dos quais ao redor do núcleo. A parede do vacúolo se corou mais fracamente, semelhantemente a tecido conjuntivo (Figura 2). À coloração pelo Giemsa, os cistos foram de difícil visualização, apresentando núcleo pálido e citoplasma ligeiramente eosinofílico, sendo reconhecidos pela sua forma (Figura 1a).

Abscessos de 1-2mm de diâmetro, com colônias de micrococos, foram vistos no miocárdio e na válvula mitral. Embolia séptica foi detectada no fígado, baço, rins, pâncreas, estômago, intestino delgado e nos pulmões, este último apresentando também broncopneumonia confluente. Evidenciou-se ainda orquite granulomatosa com bacilos ácool-ácido-resistentes e atrofia do epitélio germinal.

O óbito do paciente foi atribuído à septicemia aguda por Staphylococcus aureus, confirmada por hemoculturas.

 

DISCUSSÃO

O presente relato de isosporíase humana com localização extra-intestinal é o primeiro descrito no Brasil e, provavelmente, o quinto na literatura. Todos os casos já descritos foram associados a pacientes HIV(+)/SIDA e demonstraram cistos unizóicos ou monozóicos preferencialmente em linfonodos mesentéricos e traqueobronqueais, no fígado e baço além da presença de cistos teciduais na mucosa intestinal6 8 9. Experimentalmente, tem sido observado estágios extra-intestinais de Isospora felis e Isospora rivolta em linfonodos mesentéricos, fígado, baço, pulmão e cérebro de gatos jovens 3.

Um dado polêmico na literatura está relacionado com a origem dos cistos unizóicos extra-intestinais evidenciados em pacientes com HIV(+)/SIDA, pois não se sabe se resultam da ingestão de oocistos ou do ciclo entérico. De acordo com a hipótese de Lindsay et al5, os cistos extra-intestinais seriam originados de merozoítos produzidos no intestino ou em outros sítios extra-intestinais, que através das vias linfáticas ou sanguineas poderiam ser disseminados. Este fato é reforçado pela presença de estágios sexuados de I. belli no epitélio da vesícula biliar associado a cistos unizóicos nos linfonodos mesentéricos evidenciados neste trabalho, assim como pelos dados de Benator et al1, que observaram estágios assexuados e sexuados no epitélio do ducto biliar e de Comin & Santucci2 que detectaram merozoítos no lúmen intestinal, lâmina própria e dentro de canais linfáticos. Contudo, a questão permanece em aberto diante do pequeno número de casos descritos na literatura, sendo fundamental a caracterização dessas formas com técnicas de microscopia eletrônica, imunohistoquimica e/ou moleculares.

Outro fato importante observado na literatura é a freqüente occorrência de recidivas por I. belli,tanto em pacientes imunocompetentes como em imunossuprimidos. Segundo Lindsay et al5 as recidivas, provavelmente, seriam decorrentes da presença de zoítos quiescentes dentro de cistos extra-intestinais os quais seriam menos susceptíveis aos tratamentos anticoccídios. Esta situação é similar à observada em encefalites por toxoplasmose em pacientes com SIDA, onde a recidiva é comum e é causada por estágios císticos com bradizoítos latentes4.

A importância da resposta imune celular na infecção por coccídios é bem evidenciada na criptosporidiose onde o tratamento com anti-retrovirais estimula a resposta imunológica do paciente com SIDA, aumentando o número de linfócitos CD4 que está diretamente relacionado com o controle da infecção e seus sintomas7. Entretanto, no caso aqui relatado, apesar do paciente ter sido tratado repetidas vezes com sulfamethoxazol-trimetoprim e ter recebido tratamentos anti-retrovirais apresentando índices de linfócitos T CD4 superiores a 208/mm3, a infecção persistiu com a detecção de oocistos de I. belli nas fezes. O encontro de cistos unizóicos neste paciente revela parcial sensibilidade à quimioterapia, com a persistência do parasita, fato que pode estar diretamente relacionado com a ocorrência de recidivas. De acordo com estes achados fica evidente a necessidade de mais estudos sobre a importância da resposta celular do hospedeiro em relação à infecção por I. belli e ainda, se a presença tecidual dos cistos unizóicos extra-intestinais, seria um mecanismo de escape do parasita à ação quimioterápica dos anticoccídios.

 

AGRADECIMENTOS

Ao Dr. Javier Lazo do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, por medir as células com Morphometria Leica Q500 MC e a João Norberto de Oliveira do Departamento de Histologia (Microscopia eletrônica), FMTM, pelas fotografias que acompanham este trabalho.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Endereço para correspondência
Dr. Jacob K. Frenkel
1252 Vallecita Drive, Santa Fé
NM 87501-8803, USA

Recebido para publicação em 26/11/2002
Aceito em 23/5/2003
Trabalho realizado como auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Projeto CDS 2334/98)