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Estudo clínico da malária falciparum em crianças em Manaus, AM, Brasil

Elza Noronha, Maria das Graças Costa Alecrim, Gustavo Adolfo Sierra Romero e Vanize Macêdo

Núcleo de Medicina Tropical e Nutrição da Universidade de Brasília, DF, Instituto de Medicina Tropical do Amazonas, Manaus, AM, Brasil

DOI: 10.1590/S0037-86822000000200005


Resumo As características clínicas da malária falciparum foram estudadas em 61 crianças com idade de 0 a 14 anos, atendidas em centro de referência em Manaus, entre outubro e dezembro de 1997. Os sintomas encontrados foram febre (98,4%), cefaléia (80,3%), calafrios (68,9%), sudorese (65,6%), mialgia (59%), náuseas (54,1%), lombalgia (49,2%), vômitos (49,2%), tosse (45,9%), artralgia (31,1%), diarréia (34,4%), dispnéia (8,2%), convulsões (8,2%) e tonturas (4,9%). Palidez cutâneo-mucosa e anemia foram observadas mais freqüentemente nas crianças menores de 5 anos. A anemia esteve asssociada aos maiores níveis de parasitemia. Cinqüenta e oito (91,5%) pacientes apresentaram malária não complicada, 3 (4,9%) malária grave e a letalidade foi 1,6%.
Palavras-chaves: Malária. Clínica. 
Plasmodium falciparum. Brasil.

Abstract The clinical characteristics of falciparum malaria were studied among 61 children, aged 0 to 14 treated at a reference center in Manaus, from October to December 1997. The symptoms observed were fever (98.4%), headache (80.3%), chills (68.9%), perspiration (65.6%), myalgia (59.0%), nausea (54.1%), lumbar pain (49.2%), vomiting (49.2%), cough (45.9%), arthralgia (31.1%), diarrhea (34.4%), dyspnea (8.2%), convulsions (8.2%) and dizziness (4.9%). Pallor and anaemia were found more frequently in children under five years old. Anaemia was associated with high levels of parasitaemia. Fifty-eight (91.5%) patients had uncomplicated malaria, 3 (4.9%) had severe malaria and the lethality was 1.6%.
Key-words: Malaria. Clinical.
 Plasmodium falciparum. Brazil.

 

 

A malária falciparum é uma doença tropical com grande importância em saúde pública em virtude das altas taxas de morbidade e mortalidade no mundo, principalmente, se considerarmos a infecção nas crianças, um grupo suscetível às formas graves da doença. Acrescenta-se ainda, o impacto do surgimento e da disseminação de cepas de P. falciparummultirresistentes, fato verificado na Amazônia Brasileira na década de 801. A Amazônia legal representa o maior foco malarígeno do país, onde tem sido relatado uma transmissão do tipo hipoendêmica e instável4, embora apresente variáveis perfis, de acordo com os agrupamentos populacionais.

Teoricamente, as crianças e os adultos da região apresentam semelhante risco de desenvolver a forma grave da doença. As maiores contribuições para o conhecimento da infecção malárica em crianças referem-se aos trabalhos realizados em áreas de transmissão intensa do P. falciparum, como algumas regiões da África, onde a maioria das crianças são infectadas no primeiro ano de vida e é alta a mortalidade infantil6 7. A aquisição de imunidade no hospedeiro humano é um importante condicionante do evento clínico da malária falciparum, sendo influenciada pelo perfil de transmissão e pela idade do indivíduo3. Uma tradução clara da influência da idade nas manifestações clínicas da malária é a diferença observada entre adultos e crianças com malária grave. Diferente dos adultos, as crianças, apresentam complicações como malária cerebral, anemia, hipoglicemia e convulsões, entre outros16. Entretanto, a imunidade natural adquirida não é o único fator determinante do desfecho clínico da parasitose e deve-se considerar que a compreensão do processo saúde-doença na malária falciparum pressupõe uma visão mais ampla dos fenômenos biológicos conhecidos, pois a maior gravidade da doença depende de interações complexas entre sistema imune, carga genética do hospedeiro, resistência aos antimaláricos, fatores operacionais como o acesso a diagnóstico e tratamento precoces e, possivelmente, fatores de virulência relacionados ao parasita13. Portanto, observa-se a necessidade de se estudar a doença em cada contexto geográfico, como nesse trabalho, onde pretendemos avaliar as características clínicas da malária falciparum em crianças procedentes da Amazônia brasileira.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O estudo foi realizado no Instituto de Medicina Tropical do Amazonas (IMT-AM), centro de referência para doenças infecciosas em Manaus. O número de casos atendidos no serviço corresponde a 58% do total do município, procedentes da áreas rural e urbana. Cerca de 75% dos pacientes têm idade acima de 14 anos e predomina a malária por P. vivax. A infecção por P. falciparum nas crianças representa 20% dos casos de malária falciparum. Em 1996, a malária falciparum foi a segunda principal causa de internação no serviço correspondendo a 3% dos casos de malária, não sendo registrados óbitos.

No período de outubro a dezembro de 1997, foram avaliadas todas as crianças de 0 a 14 anos com infecção por P. falciparum. Os pacientes com gota espessa positiva eram encaminhados ao ambulatório onde, após a obtenção de consentimento informado dos pais ou responsáveis, procedia-se à anamnese, exame clínico e coleta de sangue para realização da quantificação de leucócitos e plaquetas, dosagem de hematócrito, hemoglobina, glicose, uréia, creatinina, transaminases, bilirrubinas. A pesquisa de plasmódio foi realizada através de punção digital e confecção de gota espessa, com coloração pelo Giemsa e contagem dos parasitas, tendo como referência 100 leucócitos para a estimativa da densidade parasitária2. As dosagens hematológicas e bioquímicas foram realizadas por método automatizado, nos aparelhos STK e Ciba Corning Express 550/Plus, sendo usadas as referências do aparelho para valores normais. Em especial, considerou-se anemia quando os valores de hemoglobina estavam abaixo de 11g/dl para as crianças com até cinco anos e 12g/dl para as demais5. Os pacientes foram acompanhados com controles clínico e parasitológico nos dias 3, 5, 7, 14, 21, 28 e 35 após o início do tratamento. O seguimento foi feito, preferencialmente, no ambulatório, sendo indicada a internação nos casos graves. Todas as crianças foram avaliadas de acordo com os critérios de gravidade da Organização Mundial de Saúde (OMS)16 e tratadas segundo o protocolo do serviço, inclusive para as intercorrências e patologias associadas.  Excepcionalmente, foi adotado o ponto de corte de sessenta mil parasitas/mm3 para o critério de hiperparasitemia, segundo Alecrim1. O protocolo de pesquisa foi aprovado pela Comissão de Ética do IMT-AM e cumpriu com as exigências da resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Os dados foram analisados no Programa EPI-INFO versão 6.04. A freqüência dos eventos foi estimada por meio de proporções e seus respectivos Intervalos de Confiança de 95% com nível de significância de 5%. As proporções foram comparadas pelo teste do Qui-quadrado.

 

RESULTADOS

Foram estudadas 61 crianças com malária falciparum, cuja média de idade foi 7,5 anos, a idade mínima observada foi 4 meses e a máxima 14 anos. Não houve diferenças na distribuição por sexo e houve predomínio de mestiços (91,8%) e de brancos (8,2%). Cerca de oitenta e cinco por cento das crianças nasceram no Amazonas. A maioria (86,3%) das crianças moravam no município de Manaus e as demais, nos municípios de Careiro da Várzea, Manacapuru, Presidente Figueiredo, Rio Preto da Eva e de Boa Vista, em Roraima. A média de tempo de residência no local foi 3,5 anos (DP = 3,6 anos). Cerca de 55,7% moravam em área rural e, 43,8% em área urbana. Em relação ao local de provável aquisição de infecção, a maioria (85,2%) teria sido infectada na área rural, embora tenha ocorrido transmissão urbana (13,1%), principalmente nos bairros da periferia de Manaus. Uma (1,6%) criança adquiriu a doença em área de garimpo. Em relação à exposição prévia, 45,9% apresentaram episódios anteriores de malária e 31% havia feito uso de antimaláricos nos últimos 30 dias. Aproximadamente, 19% das crianças não faziam uso de medida de proteção individual como repelentes ou mosquiteiros.

Os principais sintomas e sinais observados antes do tratamento, bem como a sua duração média estão mostrados na Tabela 1. Não houve diferença na sintomatologia entre os pacientes com diferentes níveis de parasitemia, considerando o ponto de corte de cinco mil parasitas/mm3. Em relação à idade, a lombalgia foi mais freqüente nas crianças de 10 a 14 anos, não sendo possível estabelecer significância estatística entre os demais. Ao exame físico, 95,1% não apresentavam comprometimento do estado geral. Com relação aos achados anormais, 52,5% dos pacientes tinham hepatomegalia, 42,6% esplenomegalia, 37,7% palidez cutâneo-mucosa e 11,5 % desidratação leve. Apenas uma (1,6%) criança era assintomática, porém, estava em acompanhamento para verificação de cura de malária por P. vivax e teve a parasitemia inicial calculada em 64 parasitas/mm3.

 

Tabela 1 – Sinais e sintomas em crianças com malária falciparum no IMT-AM-1997 – freqüência e duração.

 

As alterações laboratoriais (Tabela 2), mostram que a anemia foi o achado mais importante, sendo verificada em 54,5% das crianças. Não foi evidenciada anemia grave (Hb < 5g/dl). Houve uma forte associação entre a presença de anemia e os maiores níveis de parasitemia, sendo mais freqüente nas crianças com parasitemia acima de cinco mil parasitas/mm3(teste X2p = 0,003). A distribuição de achados clínicos e laboratoriais, entre as faixas etárias, mostrou a correlação estatística significante entre a palidez cutâneo-mucosa e a anemia nas crianças menores de 5 anos (Tabela 3).

 

Tabela 2 – Exames laboratoriais com alterações das 61 crianças com malária falciparum no IMT-AM-1997.

 

 

Tabela 3 – Alterações clínicas e de exames laboratoriais nas 61 crianças com malária falciparum, de acordo com a faixa etária, no IMT-AM-1997.

 

Três (4,9%) crianças (IC 95% de 1,3 a 14,6) apresentaram malária grave e 58 (95,1%) crianças (IC 95% de 85,4 a 98,7) malária não complicada. A letalidade foi 1,6% (IC 95% de 0,1 a 10), sendo registrado um óbito no período. Em relação aos critérios de gravidade verificados, uma criança de 12 anos apresentou hiperparasitemia, icterícia, insuficiência renal, convulsões e sangramentos espontâneos. Outra de 3 anos, após o tratamento com mefloquina, evoluiu com hiperparasitemia, infecção pulmonar e febre hemoglobinúrica, e uma terceira, de 11 meses, apresentou queda do estado geral e prostração, no segundo dia de internação, após negativação da parasitemia, apresentou insuficiência respiratória e óbito.

 

DISCUSSÃO

O conhecimento do comportamento clínico da malária falciparum em cada contexto epidemiológico é importante para a implementação de medidas ideais de tratamento e de controle. A maioria das crianças avaliadas nesse estudo se infectaram em área rural de Manaus, envolvendo outros municípios numa pequena parcela. Como mostrado no trabalho, a transmissão urbana da malária falciparum em Manaus que já foi descrita anteriormente14, ocorreu em menor proporção.

A maioria das crianças apresentaram a forma não complicada da doença, entretanto, a prevalência de malária grave foi, relativamente, alta, considerando o padrão instável de transmissão da malária na região. A prevalência de 4,9% de doença grave pode ser explicada pelas características da população estudada, pois se trata de uma amostragem de conveniência de casos atendidos em serviço hospitalar com seus possíveis viéses e, provavelmente, pela virulência da cepa envolvida. Um outro aspecto a ser considerado é a importância do tempo de evolução da doença, embora esse estudo não tenha permitido avaliar esse fator prognóstico.

A letalidade foi baixa no grupo estudado, comparada aos dados observados em crianças hospitalizadas em Itaituba no Pará12, embora esteja de acordo com estudos anteriores realizados no IMT-AM8 e em Rondônia9. O óbito verificado foi causado por insuficiência respiratória que, geralmente, está associada a maior mortalidade em crianças africanas10.

Em relação aos sintomas, vale ressaltar a ocorrência de convulsões em cinco crianças, embora pareçam estar relacionadas exclusivamente ao P. falciparum somente em duas. Nas demais, os fatores determinantes causais relacionaram-se com a febre e antecedentes convulsivos. A ocorrência de convulsões tem sido relatada em crianças com malária não complicada e complicada, parecendo haver relação com a infecção pelo P. falciparum e idade menor de três anos15.

No estudo, ao estabelecermos as relações entre anemia, maiores níveis de parasitemia e baixa idade, levantamos a possibilidade da malária ser um fator importante para explicar os baixos índices de hemoglobina, como é encontrado nas áreas hiperendêmicas11 17. Entretanto, outras possibilidades devem ser consideradas como os fatores carencial e espoliativo, não avaliados nesse estudo.

Os dados apontam para a importância da anemia nas crianças menores de cinco anos com malária falciparum atendidas no IMT-AM, sugerindo a necessidade da monitorização do nível hemoglobina com o objetivo de diminuir a morbidade pela doença, além das orientações já estabelecidas em relação à importância do acesso rápido ao tratamento adequado na prevenção das formas graves da doença.

 

AGRADECIMENTOS

Às crianças e pais pela colaboração, ao Prof. Wilson Duarte Alecrim, pelas facilidades oferecidas para a realização do estudo no IMT-AM e ao Prof. Edgar Merchan-Hamann pelo auxílio na análise de dados.

 

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