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Febre tifóide: recaída por resistência antimicrobiana. Relato de caso

Wilson Duarte AlecrimI,II,III; Adalgisa Câmara de Sá Peixoto LoureiroII; Ricardo Silva MoraesI; Rossicleia Lins MonteII,III; Marcus Vinícius Guimarães de LacerdaII

IFundação Universidade do Amazonas, Manaus, AM IIFundação de Medicina Tropical do Amazonas, Manaus, AM IIIUniversidade do Estado do Amazonas, Manaus, AM

DOI: 10.1590/S0037-86822002000600019


RESUMO

Relatamos pela primeira vez na Amazônia Brasileira um paciente com febre tifóide, com resistência clínica e laboratorial ao cloranfenicol, droga de escolha para esta doença em nossa região. A recaída foi observada no 7° dia após o término do tratamento e a paciente foi tratada com ciprofloxacina.

Palavras-chaves: Febre tifóide. Cloranfenicol. Recaída. Resistência.


ABSTRACT

We report for the first time in the Brazilian Amazon a typhoid fever patient with clinical and laboratorial resistance to chloramphenicol, drug of election for this disease in our region. The relapse was observed at the 7th day after the end of treatment and the patient was treated with ciprofloxacin.

Key-words: Typhoid fever. Chloramphenicol. Relapse. Resistance.


 

 

A febre tifóide continua sendo problema de saúde pública em países com precárias condições sanitárias, representando ainda um grande desafio o seu diagnóstico microbiológico, tratamento radical e, conseqüentemente, o controle da endemia. As áreas com maior número de casos não dispõem ainda de laboratório especializado em bacteriologia, motivo pelo qual pouco se conhece a respeito do perfil de resistência da Salmonella aos principais antimicrobianos, nestas localidades.

Muitas vezes, a recaída da doença é atribuída ao tratamento feito de forma inadequada, seja em razão dos efeitos colaterais desencadeados pelo cloranfenicol ou pelo tempo prolongado de tratamento, contribuindo para uma diminuta adesão terapêutica. Acredita-se que algumas destas recaídas se devam também à subnotificada resistência da bactéria ao cloranfenicol e a outros antimicrobianos de primeira linha para o tratamento da febre tifóide.

 

RELATO DOS CASO

Paciente do sexo feminino, de 11 anos de idade, procedente de Coari, AM, no médio Rio Solimões, procurou a Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (FMT/IMT-AM) com história de onze dias de febre alta contínua. O exame físico era normal. Hemograma e análise bioquímica do sangue estão demonstrados na Tabela 1. A pesquisa de Plasmodium sp, ao exame da gota espessa e QBC, foi negativa. O teste de aglutinação (reação de Widal) foi reativo apenas para o antígeno O de Salmonella typhi (diluição 1/20).

 

 

Com base em critérios clínico-epidemiológicos, foi feito o diagnóstico de febre tifóide. Tendo em vista o bom nível de esclarecimento da família, optou-se pelo tratamento ambulatorial com cloranfenicol, na dose de 50mg/kg/dia. Como a criança não apresentava melhora, no sexto dia de tratamento voltou a procurar a FMT/IMT-AM, sendo então internada na Enfermaria de Pediatria da Unidade de Internação Nelson Antunes daquela instituição, para observação e administração supervisionada da medicação. Mantinha picos febris de até 39°C. O restante do exame físico era normal. Apresentava análise de urina e exame parasitológico de fezes normais, coprocultura, urinocultura, duas hemoculturas sem evidências de crescimento bacteriano e ultrassonografia abdominal mostrando discreta hepatomegalia. O teste de aglutinação foi repetido (doze dias após o primeiro), e foi reativo para o antígeno H de S. typhi (diluição 1/160). Optou-se pela continuação do tratamento com cloranfenicol e a criança tornou-se apirética no 11° dia após início do tratamento. Recebeu alta hospitalar e continuou o cloranfenicol por mais cinco dias, concluindo tempo total de tratamento de 16 dias. Uma semana após o término do tratamento, voltou a apresentar febre, sem nenhum outro sintoma. Foi realizada nova hemocultura, com isolamento de bastonetes Gram-negativos com características morfotintoriais e bioquímicas de germe pertencente ao gênero Salmonella, sendo identificado como S. typhi (utilizando-se os meios TSI, Rugai-Pessoa e Silva-Rugai modificados). Na Tabela 2, está assinalado o perfil de resistência antimicrobiana da bactéria isolada, utilizando-se técnica semi-quantitativa preconizada por Kirby & Bauer (NCCLS,2000), com polidiscos 21 Victor Lorianâ (Produtos Químicos Lorianâ LTDA). Em função das evidências clínicas e laboratoriais de resistência da bactéria isolada ao cloranfenicol, fez uso de ciprofloxacina (250mg, oral, a cada 12h) por sete dias, com apirexia no terceiro dia de tratamento. Duas coproculturas subseqüentes, realizadas com intervalos de 15 dias, não evidenciaram crescimento bacteriano.

 

 

DISCUSSÃO

No caso relatado, a despeito da discussão quanto à terapêutica, notamos que o quadro clínico se resume à síndrome febril, estando ausentes os clássicos sinais e sintomas da febre tifóide, como diarréia, hepatoesplenomegalia ou pancitopenia ao hemograma. É, no entanto, a partir da síndrome febril indiferenciada, que fazemos, muitas vezes, este diagnóstico, em nossa região, especialmente nas primeiras duas semanas da doença.

A Amazônia Brasileira é responsável por mais da metade dos casos de febre tifóide notificados em nosso país6, possivelmente por apresentar condições sanitárias deficientes. Apesar da preconização do uso de quinolonas (mesmo em crianças11, apesar de sua questionável toxicidade sobre tecidos cartilaginosos humanos) ou cefalosporinas de terceira geração como primeira escolha no tratamento da febre tifóide, em alguns países1, temos optado ainda pelo uso do cloranfenicol, em função de seu baixo custo e resposta terapêutica satisfatória, a despeito de seus efeitos adversos. Embora Cunha e colstenham demonstrado, em 1981, 100% de sensibilidade da S. typhi ao cloranfenicol, em diferentes estados brasileiros, outros trabalhos evidenciam a resistência da bactéria a este antibiótico desde a década de 60, em outros países e também no Brasil 2 3 8 14.

Trata-se do primeiro caso de resistência in vitro e in vivo de S. typhi ao cloranfenicol relatado na Amazônia Brasileira. A resistência à droga deve ser considerada em todos os casos de recaída (retorno dos sintomas até 15 dias após o término do tratamento), excluindo-se outras causas comuns de recaída9, como a má qualidade da droga administrada, administração incorreta, tempo inadequado de tratamento ou condição subjacente que não permita a esterilização bacteriana (e.g., litíase biliar). Eventualmente, as bactérias resistentes são responsáveis por epidemias de febre tifóide, como a do México, em 1972, com observação de 75% de resistência da S. typhi ao cloranfenicol15.

A resistência da Salmonella a antibióticos de uso rotineiro é um problema de saúde pública, contribuindo para a perpetuação desta endemia em nosso meio, além das cepas resistentes apresentarem mais recaídas, mais complicações clínicas10, retardo da apirexia e, conseqüentemente, maior tempo de internação hospitalar, sobrevindo daí o aumento dos custos. A MDRST (multidrug-resistant S. typhi) já é um problema em países como Índia4, Quêniae Paquistão12 13, provavelmente em função do uso indiscriminado e inadequado de antibióticos, tanto em homens quanto em animais, já que a pressão seletiva destas drogas sobre bactérias de interesse veterinário também influencia o perfil de sensibilidade de bactérias patogênicas ao homem, por troca de plasmídeos R, principais responsáveis pelo mecanismo de resistência.

Em casos semelhantes ao relatado, quando houver recaída clínica, deve-se sempre levar em consideração a possibilidade de resistência da S. typhi ao cloranfenicol.

 

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Endereço para correspondência
Prof. Wilson Duarte Alecrim
Av. Pedro Teixeira, 25, Planalto
69040-000 Manaus, AM, Brasil
Telefone: 55 92 238-1146; fax: 55 92 238-7220
e-mail: walecrim@uol.com.br

Recebido para publicação em 27/8/2001.