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Tratamento da malária com artesunate (retocaps®) em crianças da Amazônia brasileira

Maria das Graças Costa Alecrim, Luis Magalhães Carvalho, Marcus Cardoso Fernandes, Solange Dourado de Andrade, Adalgisa Cardoso Loureiro, Ana Ruth Lima Arcanjo e Wilson Duarte Alecrim

Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (FMT/IMT-AM), Manaus, AM, Brasil.

DOI: 10.1590/S0037-86822000000200001


Resumo Avaliamos a resposta clínica e parasitológica à terapêutica com o artesunate retocaps®, em 32 crianças internadas na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, que apresentavam malária com quadro clínico moderado e grave. Destas, 29 tinham a doença por P. falciparum e três, P. vivax. A melhora clínica foi observada após 24 horas do início da terapêutica, com 33,3% de pacientes afebris e, 48 horas após o tratamento, 77,2% das crianças não apresentavam febre.O acompanhamento da parasitemia assexuada, mostrou que no D2 58,6% das crianças com malária falciparum estavam negativas; em D4 todas haviam negativado, tanto na malária pelo P. falciparum como pelo P. vivax. No seguimento prolongado, na malária P. falciparum, encontramos 66,6% de recrudescências. Os resultados nos permitem concluir pela eficácia e praticidade no uso do artesunate retocaps® com rápida redução da parasitemia e melhora clínica. Entretanto, na malária P. falciparum a taxa de recrudescência foi elevada. Não foi observado para-efeito que possa ser imputado ao uso da droga.
Palavras-chaves: Malária. Artesunate Retocaps®. Tratamento.

Abstract We evaluated the clinical and therapeutic response to artesunate retocaps® in 32 children admitted to the Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (Amazon Foundation of Tropical Medicine) with clinical characteristics of moderate and severe malaria. Of these, 29 were infected with P. falciparum and 3 with P. vivax. They improved clinically 24 hours after the beginning of therapy, with 33.3% of patients without fever, and after 48 hours, 77.2% of the children had no fever. The monitoring of asexual forms of the parasites showed that on D2 (day 2 of treatment) 58.6% of children with P. falciparum infection had no more parasites in the blood stream, on D4 all children had negative slides both for P. falciparum and for P. vivax infection. In a long-term follow up, we found 66.6% recrudescence in P. falciparum patients. The results enabled the conclusion that artesunate retocaps® are efficient in practice and their use rapidly reduces the parasitemia and improves the patients’ clinical picture. However, in P. falciparum malaria the recrudescence rate was very high. We observed no side effects from this drug.
Key-words: Malaria. Artesunate Retocaps®. Treatment.

 

 

A malária determina mais de um milhão de óbitos em crianças a cada ano no mundo12, algumas morrem antes de chegar à unidade de saúde, ou quando alcançam estas unidades apresentam malária grave com alta letalidade. É necessário que tenhamos drogas antimaláricas de fácil aplicação em crianças, com boa resposta terapêutica, desprovidas de efeitos colaterais, e que possam ser usadas com segurança no campo. Os derivados das artemisininas são altamente eficazes em negativar a malária por P. falciparuminclusive pelas cepas multirresistentes4 3 8 .

A eficácia com uso dos supositórios de artemeter e artesunate no tratamento da malária complicada e não complicada foi demonstrada na China por Li et al6 em 1985, verificando ainda, que as artemisininas sob forma de supositórios são efetivas no tratamento da malária grave, com maior praticidade para o tratamento de crianças, mesmo em áreas remotas.

Um estudo randomizado para verificar a eficácia e a segurança dos supositórios de artesunate, comparando com artesunate oral associado à mefloquina, realizado na Tailândia, em crianças com malária falciparum multirresistente, mostrou que o tempo do desaparecimento da febre, e da negativação da parasitemia foi similar nos dois grupos estudados, concluindo que o uso de supositórios de artesunate é uma ótima opção para o tratamento da malária em áreas endêmicas10 .

A terapêutica antimalárica para crianças é dificultada na prática pelo fato de não existir apresentação na dosagem específica, principalmente para uso por via oral. O supositório de artesunate 50mg, mostrou ser eficaz no tratamento da malária falciparum grave, não grave e cepas multirresistentes, podendo ser uma alternativa para uso pediátrico, inclusive nas crianças com náuseas e vômitos5 10.

A malária é a principal doença parasitaria do Brasil, em 1997 foram diagnosticados 405.051 casos dos quais 99,6%, procederam da Amazônia brasileira. O problema com a endemia malárica no Brasil e em todos os países malarígenos não está relacionado unicamente com os adoecimentos e à falta de controle epidemiológico, mas também à resistência do P. falciparum às drogas como cloroquina, quinino, e mais recente à mefloquina1 9, levando à dificuldade na cura dos pacientes e no controle da endemia.

No período de janeiro de 1993 a dezembro de 1997, foram atendidas na Fundação de Medicina Tropical (FMT/IMT-AM) 40.431 pacientes com malária, 10.753 (26,5%) eram crianças na faixa etária de 0 a 14 anos. A incidência da malária nesta faixa etária é importante causa de morbidade e mortalidade na infância. Portanto existe a necessidade real de drogas antimaláricas com rápida ação esquizonticida e de fácil administração em crianças, principalmente para as áreas remotas do país, onde o uso de droga injetável é mais difícil e sujeito a complicações.

Neste estudo, através da negativação da parasitemia e desaparecimento da febre avaliamos o tratamento de crianças com malária falciparum e vivax com artesunate retocaps®.

 

PACIENTES E MÉTODOS

No período de agosto de 1996 a julho de 1997, foi estudada uma amostra de 32 crianças na faixa etária de 1 a 12 anos, com diagnóstico de malária, sendo 29 infectadas pelo P. falciparum e três pelo P. vivax, procedentes da Amazônia brasileira, nas quais foi administrado artesunate retocaps®. A seleção dos pacientes foi aleatória, feita através de demanda espontânea, após autorização e consentimento dos responsáveis. Excluímos do estudo crianças que apresentavam outras doenças associadas à malária.

O artesunate retocaps® é um derivado das artemisininas contendo 50mg de artesunate em cada capsula, de administração retal, diferenciando-se dos supositórios comuns em razão da termoestabilidade à temperatura de até 40oC, dispensando a necessidade de refrigeração para conservação. Todas as crianças tratadas foram internadas durante oito dias na enfermaria de pediatria da Fundação de Medicina Tropical, na cidade de Manaus, com supervisão médica contínua. Após a alta foram acompanhadas em regime ambulatorial. O artesunate retocaps® foi administrado em conformidade com o esquema apresentado na Tabela 1.

 

Tabela 1 – Esquema terapêutico com artesunate (retrocaps®) 50mg.

 

Quanto à gravidade do quadro clínico, a doença foi classificada segundo Alecrime WHO12 em: leve, moderada e grave. Leve: presença de astenia, e ou cefaléia, e febre baixa (37 a 37,5oC); moderada: cefaléia, febre, náuseas, vômitos e calafrios; grave: sinais e sintomas clássicos da malária, associados a uma ou mais das complicações como anemia, coma, hipoglicemia, insuficiência renal, coagulação intravascular disseminada, edema agudo de pulmão.

As crianças foram examinadas diariamente, atentando-se para a presença de anemia, hepatomegalia e esplenomegalia; a temperatura axilar foi aferida quatro vezes ao dia.

No dia da internação, após confirmação parasitológica da malária, foram realizados os exames laboratoriais: hemograma, contagem de plaquetas, dosagem de transaminases (TGO e TGP), bilirrubinas, glicose, uréia, creatinina.

O diagnóstico da malária, foi realizado pelo método da gota espessa, diariamente, até o sétimo dia para verificar quando ocorreria negativação, e possibilidade de resistência, tipo R2 ou R3. A parasitemia expressa em trofozoítos por milímetro cúbico de sangue.

Após alta hospitalar no oitavo dia (D8), as crianças com malária falciparum foram acompanhadas ambulatorialmente nos dias 14, 21, 28 para avaliar a possibilidade de resistência R1.

A parasitemia foi classificada em: baixa, até 15.000 parasitas por mm3 de sangue; média, de 15.001 a 60.000 parasitas por mm3 de sangue; alta, acima de 60.001 parasitas por mm3 de sangue.

 

RESULTADOS

Das 32 crianças incluídas no trabalho, 29 (90,6%) tinham malária pelo P. falciparum e 3 (9,4%) pelo P. vivax. A procedência dos pacientes foi predominantemente do Amazonas 30 (93,75%), principalmente do município de Manaus com 53,2% e 2 (6,25%) do Pará. A faixa etária variou de 1 a 12 anos, sendo que 46,8% das crianças tratadas tinham de 1 a 2 anos de idade, 25% de 3 a 5 anos, 18,8% de 6 a 9 anos e 9,4% de 10 a 12 anos.

Em 17 (53,2%) crianças predominou a forma clínica grave, seguida da forma moderada em 14 (43,7%) e da forma leve em 1 (3,1%) (Figura 1).

 

 

No dia da internação, todas as crianças apresentavam febre, em D1 33,3% estavam sem febre e em D2 77,2%. Os sinais e sintomas encontrados foram: calafrio, sudorese e palidez cutâneo-mucosa em 31 (96,8%), hepatomegalia em 19 (59,3%) e esplenomegalia 15 (46,8%). Náuseas e vômitos foram verificados, em 10 (31,25%) (Figura 2).

 

 

A anemia foi encontrada em 31 (96,8%) das crianças, sendo que 14 (43,7%) apresentaram anemia grave com hematócrito abaixo de 22%. A plaquetopenia, foi observada em 19 (59,3%) crianças, hipoglicemia em 4 (12,5%), transaminases elevadas em 10 (34,4%).

A classificação da parasitemia nas 29 crianças com malária falciparum no dia zero do atendimento revelou 21 (72,5%) com baixa parasitemia, 7 (24,3%) com média parasitemia, e 1 (3,2%) com alta parasitemia (Tabela 2). A negativação da parasitemia foi verificada nos seguintes dias: D1, 3 (10,4%); D2, 17 (58,6%); D3, 5 (17,2%) e em D4, 4 (13,8%). No quinto dia de tratamento, nenhuma das crianças apresentava-se positiva ao exame da gota espessa (Tabela 3). Nove crianças foram acompanhadas até o dia 35, das quais 6 (66,6%) apresentaram recrudescência a nível de R1.

 

Tabela 2 – Distribuição dos pacientes com malária P. falciparum quanto a parasitemia por mm3de sangue, tratados com artesunate (retrocaps®) na Fundação de Medicina Tropical, no período de agosto de 1996 a julho de 1997.

 

 

Tabela 3 – Negativação da parasitemia dos pacientes com P. falciparum tratados com artesunate (retrocaps®), na Fundação de Medicina Tropical, no período de agosto de 1996 a julho de 1997.

 

Nas crianças com malária vivax, a parasitemia no dia zero do atendimento mostrou 1 (33,3%) com baixa parasitemia e 2 (66,7%) com média parasitemia. A ausência de trofozoítos no sangue periférico foi verificada no D2, em 2 (66,7%) crianças e no D3, 1 (33,3%).

 

DISCUSSÃO

As artemisininas e seus derivados são as drogas que negativam mais rapidamente a parasitemia da malária, com rápido desaparecimento da febre, usadas principalmente na malária com quadro clínico grave e multiresistente2 5 3 11. O artesunate retocaps®, foi usado na China, Tailândia, Gabão, Vietnam4 6 7 10, mostrando-se eficaz no tratamento da malária grave e não grave.

A anemia presente em 59,3% das crianças, com hematócrito abaixo de 22%, foi ocasionada pela malária, embora se admita que nas áreas endêmicas geralmente exista carência nutricional, que também pode estar contribuindo para acentuação da anemia. Plaquetopenia, hipoglicemia e aumento das transaminases foram encontradas fazendo parte do quadro clínico da malária e não representaram importantes problemas.

As crianças apresentaram melhora clínica já no segundo dia de internação, quando o clareamento da parasitemia já havia ocorrido em 59,4%. Após D4, a parasitemia no sangue periférico era negativa em todos os pacientes, mostrando a eficácia da droga, de forma similar ao que ocorre com os derivados das artemisininas usados por via parenteral2 3.

Nas crianças com malária falciparum que fizeram acompanhamento até o dia 35, a recrudescência ocorreu em 6 (66, 6%) casos, mostrando alto percentual, e revelando o mesmo padrão terapêutico dos derivados das artemisininas por via intramuscular ou endovenosa, quando usadas em monoterapia.

Concluímos que o artesunate retocaps®, se mostrou eficiente em negativar rapidamente a parasitemia nas crianças, independente da gravidade da forma clínica, sendo eficaz no tratamento clínico das crianças, porém não eficiente para levar à cura parasitológica em todas elas.

Devido à facilidade do seu uso, o supositório deve ser recomendado nas áreas endêmicas onde não temos condições de usar drogas por via parenteral ou em crianças apresentando vômitos. Na malária por P. falciparum a alta incidência de recrudescência pode ser corrigida através da associação com outras drogas antimaláricas, como a mefloquina ou a clindamicina.

 

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