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Despopulação neuronal cardíaca em hamsters (Mesocricetus auratus) cronicamente infectados com o Trypanosoma cruzi

Edmundo Chapadeiro, Eliane Lages Silva, Anita C. M. Silva, Patrícia Fernandes e Luis Eduardo Ramirez

Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro.

DOI: 10.1590/S0037-86821999000100007


Resumo Com o objetivo de se obter um modelo experimental que permitisse estabelecer a despopulação (desnervação) neuronal cardíaca procurou-se pesquisar o comportamento do sistema nervoso intracardíaco em hamsters cronicamente infectados com o T. cruzi. Para tal fim, realizaram-se contagens dos neurônios do plexo nervoso autonômico intracardíaco em hamsters inoculados com 35.000 formas sangüíneas de três cepas diferentes, sacrificados 5, 8 e 10 meses depois da infecção. Demonstrou-se, pela primeira vez, destruição neuronal significativa num modelo experimental, similar à que ocorre na doença de Chagas humana. 
Palavras-chaves: Despopulação neuronal cardíaca. Desnervação parassimpática. Doença de Chagas experimental. Hamster.

Abstract The aim of this study was to obtain an experimental animal model of destruction of cardiac neurons in order to investigate the behavior of the cardiac nervous system of hamsters chronically infected with Trypanosoma cruzi. We counted the neuronal cells of the cardiac autonomic nervous plexus in hamsters inoculated with 35 000 blood forms of three different T. cruzi strains and killed 5, 8 and 10 months after infection. We showed for the first time severe neuronal destruction in an experimental animal model with characteristics similar to those observed in human Chagas’disease.
Key-words: Neuronal cardiac despopulation. Parasympathetic denervation. Experimental Chagas’ disease. Hamster.

Uma das alterações morfológicas mais importantes que ocorrem durante a fase crônica da infecção chagásica humana é a lesão do plexo nervoso parassimpático dos órgãos ocos, especialmente do coração e do tubo digestivo, acompanhada por destruição neuronal. Esta despopulação9 11 (desnervação) é considerada a responsável pela patogênese das alterações cardíacas (arritmias, extrassístoles, etc.), assim como das manifestações digestivas, (megaesôfago e megacólon) que ocorrem na doença de Chagas humana. Estudos experimentais para estabelecer tal correlação foram feitos somente no rato6 7 9. Contudo, neste como em outros animais3 4 5, não foi observada perda neuronal significativa11 12 14 similar à observada na doença humana.

Na busca de um novo modelo experimental para o estudo da doença de chagas, como proposto pela Organização Mundial da Saúde16, verificou-se que o sistema nervoso intracardíaco do hamster apresentava-se lesado pelo mesmo processo inflamatório que ataca o miocárdio14 Em vista disso, procurou-se detectar se também nesse animal, cronicamente infectado pelo T. cruzi, ocorre destruição neuronal significativa nos gânglios do mencionado plexo, na tentativa de se obter um novo modelo que permita estabelecer uma correlação mais precisa entre a desnervação e a disfunção autonômica parassimpática.

MATERIAL E MÉTODOS

Três grupos de dez hamsters de ambos os sexos pesando entre 90 e 130g foram infectados com 35.000 tripomastigotas sangüíneos das cepas Y, Benedito e Vicentina; as duas últimas isoladas em nosso laboratório de pacientes chagásicos com a forma indeterminada e mista (cardíaca e digestiva) respectivamente. Quinze hamsters não infectados foram usados como controles. Os animais infectados foram identificados previamente e colocados em uma única gaiola assim como os do grupo controle. Dois animais infectados e um do grupo controle foram retirados, aleatoriamente, no 5º, 8º e 10º mês pós infecção e sacrificados, utilizando-se éter etílico anestésico. Os hamsters restantes foram utilizados em outros experimentos. Dos espécimes sacrificados, três pertenciam à cepa Vicentina, dois à cepa Benedito e um à cepa Y.

Durante a necropsia, os corações foram retirados e fixados in totum em formalina a 10%, depois de secção sagital dos mesmos. Em seguida, estas metades eram incluídas em um só bloco de parafina e cortados em secções de 6µm somente uma em cada seis secções era montada em lâmina, a fim de se proceder a contagem dos neurônios e evitar que estes fossem contados mais de uma vez, visto que os mesmos têm um diâmetro médio de 30µm. Assim, eram montados o 1º corte, o 7º, o 13º, até o esgotamento do material incluído.

O número total de secções montadas em lâminas variou de 200 a 300, devido à variação volumétrica do órgão como conseqüência não somente do dano cardíaco, mas também do ganho do peso do animal durante a experiência. As secções foram coradas pelo Giemsa modificado para tecidos, para uma melhor identificação dos neurônios e maior precisão nas contagens; cortes adicionais, não usados para a contagem foram coradas pela hematoxilina-eosina e pela coloração tricrômica de Masson para estudo histológico das lesões.

Foram contados todos os neurônios íntegros e/ou com sinais de degeneração, ao microscópio óptico (400x) excluindo-se as células com sinais de morte e/ou substituídas por gliose (satelitose).

RESULTADOS

À autópsia, os corações dos animais infectados eram aumentados de volume, congestos e com as cavidades dilatadas quando comparados com os controles. Microscopicamente, os corações mostravam inflamação multifocal ou zonal, caracterizada por infiltração de células mononucleares (macrófagos e linfócitos) e mastócitos no epicárdio (epicardite) e miocárdio (miocardite). No epicárdio, o infiltrado atingia não só o tecido conjuntivo frouxo, mas também os filetes nervosos (neurite) e os gânglios (ganglionite e periganglionite) do plexo nervoso parassimpático. Além do infiltrado inflamatório, os gânglios mostravam alterações neuronais caracterizadas por tigrólise, hipercromasia citoplasmática e sinais de morte celular (satelitose) com proliferação do estroma conjuntivo-vascular (Figuras 1 e 2). Em três animais (dois infectados com a cepa Vicentina e um com a cepa Benedito) foram detectados ninhos de amastigotas no miocárdio.

Tabela 1 apresenta os resultados da contagem dos corpos neuronais, que variou de 11 a 428 nos animais infectados e de 705 a 810 nos animais controles. Os testes estatísticos foram dispensados, visto que, o maior número de neurônios dos animais infectados estava bem abaixo do menor número daqueles dos animais controles.

DISCUSSÃO

O sistema nervoso autônomo parassimpático cardíaco do hamster está localizado nas paredes atriais e especialmente no septo interatrial. Consiste de gânglios que recebem fibras vagais (fibras pré-ganglionares) das quais saem fibras pós-ganglionares para inervar o miocárdio e outras estruturas do coração. O papel desse sistema não está, ainda, totalmente esclarecido, mas se admite que na doença de Chagas humana ele é o responsável pela disfunção cardíaca parassimpática, a qual, por sua vez, pode levar a outras manifestações mais importantes (arritmias, bloqueios de ramo, cardiomegaliam, lesão vorticilar, etc). Porém, uma correlação direta entre essa despopulação e a disfunção parassimpática de animais chagásicos crônicos não foi confirmada6.

Estudos parasitológicos e histopatológicos das fases aguda e crônica da infecção chagásica em hamster nos levaram a concluir que este animal é um modelo útil para o estudo dessa doença14, visto que apresenta lesões da cardiopatia associadas com ganglionite e neurite do plexo autonômico parassimpático cardíaco, como também lesões do trato digestivo, caracterizadas por infiltrado mononuclear constituído por macrófagos, linfócitos, plasmócitos e mastócitos localizado na musculatura e nos gânglios intramurais.

Em trabalho anterior, realizado em hasmters inoculados com as mesmas três cepas, a fim de estudar seu comportamento biológico, tivemos a oportunidade de observar que, tanto o tecido muscular (principalmente o liso) quanto o tecido conjuntivo (principalmente gorduroso e macrofágico) eram intensamente infectados desde o início (dados não publicados). No presente estudo demonstramos, pela primeira vez, despopulação significativa do plexo cardíaco em um modelo experimental da infecção por T. cruzi durante a fase crônica, muito similar àquela observada em humanos com a doença de Chagas10 11, possivelmente como conseqüência do processo inflamatório (ganglionite).

Embora pareça pequeno o número de animais infectados para a contagem neuronal, observou-se uma intensa redução no número de neurônios do plexo nervoso autônomo intracardíaco, em todos os animais estudados, que variou de 0 a 428 neurônios quando comparada com os controles. Em todos os animais infectados, o número total de neurônios esteve muito abaixo do número total dos neurônios dos animais controles, não havendo superposição das duas distribuições de valores, o que não justifica a aplicação de qualquer teste estatístico. Ainda que não se tenha detectado neurônios no coração de um dos animais infectados, isso não exclui que alguma célula nervosa pudesse ser detectada.

Em outros modelos, tais como, ratos6 7 9 13, camundongos5Calomys callosus4 5 e cães3, embora apresentem lesões similares dos gânglios autonômicos parassimpáticos cardíacos, não tem sido demonstrada destruição neuronal significativa. De tal maneira, o hamster parece ser, até agora, o único modelo experimental que apresenta despopulação (desnervação) neuronal importante, o que em alguns casos, chega a ser total, como acontece também no homem12.

Para a demonstração da disfunção autonômica parassimpática correspondente, seria necessária a aplicação de testes de disfunção cardíaca, tais como o baroreflexo e a análise espectral do eletrocardiograma que não foram realizados, ainda, neste animal

Em conclusão, a despopulação (desnervação) parassimpática observada em hamsters infectados pelo T. cruzi pode ajudar a esclarecer o papel controverso desta condição na patogenia das manifestações clínicas e morfológicas da doença humana, fato que torna este animal um modelo útil para a elucidação da disfunção autonômica parassimpática na cardiopatia chagásica humana15 e, provavelmente, em outras cardiopatias1 2 8.

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Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro.
Endereço para correspondência: Dr. Edmundo Chapadeiro. Disciplina de Patologia Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Praça Manoel Terra 330, 380015-050 Uberaba, MG.
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E-mail: pgpathum_fmtm@mednet.com.br
Recebido para publicação em 3/4/98.