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O peso do baço em chagásicos crônicos

Sanívia Aparecida de Lima Pereira, Beatriz Soares Corrêa, Gisela Paludeto Minicucci, Glauce Marlei Aires Lopes, Eumênia Costa da Cunha Castro, Marlene Antônia dos Reis e Vicente de Paula Antunes Teixeira

Disciplinas de Patologia Geral da Universidade de Uberaba e da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG.

DOI: 10.1590/S0037-86821999000200008


Resumo O baço pode aumentar de tamanho nas inflamações com repercussões sistêmicas e na congestão venosa crônica, denominando-se respectivamente, hiperplasia reacional e esplenomegalia congestiva. Sendo a doença de Chagas uma doença infecciosa com repercussões hemodinâmicas, possivelmente o baço responda não só ao envolvimento cardíaco, como também ao processo inflamatório. O objetivo deste trabalho é avaliar comparativamente o peso do baço em chagásicos ou não-chagásicos, com ou sem insuficiência cardíaca congestiva (ICC). Em estudo retrospectivo foram coletados nos protocolos de necropsias de adultos, a idade, o sexo, a cor e o peso do baço. Os 88 casos selecionados foram divididos em quatro grupos: 1) chagásicos com ICC, 2) chagásicos sem ICC, 3) não-chagásicos com ICC e 4) não-chagásicos sem ICC. A idade média foi 44,9 ± 15,4 anos, sendo 53,4% brancos e 70,5% do sexo masculino, não havendo diferença significante destas variáveis entre os grupos. O peso do baço nos grupos com ICC foi de 183,7 ± 85,9g para os chagásicos e de 206,3 ± 101,0g para os não-chagásicos. Nos grupos sem ICC o peso foi de 173,7 ± 118,9g para os chagásicos e de 117,2 ± 52,0g para os não-chagásicos. O peso foi significantemente maior nos chagásicos sem ICC quando comparados aos não-chagásicos sem ICC. Estes resultados sugerem que o componente inflamatório na doença de Chagas desempenharia papel importante no aumento do peso do baço, associado às alterações hemodinâmicas decorrentes da ICC.
Palavras-chaves: Baço. Doença de Chagas. Peso do baço. Trypanosoma cruzi.

Abstract During the course of systemic inflammatory reactions and chronic venous congestion, the documented phenomenon of increased spleen size is respectively called reactional hyperplasia and congestive splenomegaly. In Chagas’ disease, the inflammatory process observed in the heart of chronically infected patients can result in heart failure and ultimately in congestive failure. In order to evaluate the spleen response to both inflammatory and cardiac processes, in this retrospective study we compare the weight of spleens from normal and chagasic patients, with or without congestive failure. Information about patient age, sex, race and spleen weight was collected from autopsy reports. Eighty-eight selected cases were divided into four groups: 1) chagasic patients with congestive failure, 2) chagasic patients without congestive failure, 3) non-chagasic patients with congestive failure, 4) non-chagasic patients without congestive failure. The average age was 44.9 ± 15.4 years, 53.4% were Caucasians and 70.5% were males, and no significant difference in these parameters was observed between the four groups. The spleen weight for the groups presenting congestive failure was 183.7 ± 85.9g for chagasic and 206.3 ± 101.0g for non-chagasic patients; for the groups without congestive failure the average spleen weight was 173.7 ± 118.9g for the chagasic and 117.2 ± 52.0g for non-chagasic patients. The spleen weight was significantly higher for the chagasic patients without congestive failure when compared to the non-chagasic group without congestive failure. These results suggest that the inflammatory component in Chagas’ disease plays an important role in the increase of spleen weight together with hemodynamic alterations arising from congestive heart failure.
Key-words: Chagas’ disease. Spleen. Trypanosoma cruzi. Spleen weight.

 

 

O baço em humanos adultos pesa cerca de 150g, tendo as funções de filtrar corpos estranhos da circulação e de participar da resposta imunitária através de linfócitos T e B10. Macroscopicamente, o baço pode ser dividido em uma porção denominada polpa vermelha, rica em eritrócitos, e outra denominada polpa branca onde se encontram nódulos de tecido linfóide. É na polpa vermelha que o sangue é filtrado, enquanto a polpa branca é responsável pela defesa imunológica12.

Como a maior unidade do sistema mononuclear fagocitário (SMF), o baço é envolvido em todas as inflamações sistêmicas, quando geralmente aumenta de tamanho, sendo nestes casos denominado baço ativado ou estado reacional hiperplásico10. A esplenomegalia do estado reacional hiperplásico é causada sobretudo pelas modificações dos cordões de Billroth, constituído pelo tecido linfóide, e dos seios, ocupados pelos elementos do sangue circulante. Nestes casos, não há inflamação do órgão, mas apenas exaltação adaptativa de suas funções normais, podendo ter uma forma aguda e outra crônica, sendo que nesta última o baço pode aumentar consideravelmente de volume10.

Igualmente, nos casos de congestão venosa persistente ou crônica, há aumento do baço denominado esplenomegalia congestiva9. A hiperemia passiva de origem cardíaca pode ocorrer na insuficiência cardíaca congestiva (ICC) de qualquer causa, mas especialmente nos defeitos valvares direitos e no cor pulmonale crônico. Nesses casos o baço se torna rígido, duro e com a cápsula tensa10.

Comparativamente, em ratos infectados pelo Schistosoma mansoni, também uma doença infecciosa como a doença de Chagas, verificou-se uma elevação proporcional no número de neutrófilos, plasmócitos, macrófagos e eosinófilos no baço. Foi encontrado ainda, um retardo na evolução dos granulomas periovulares em ratos esplenectomizados, quando linfonodos ou outros órgãos linfóides secundários assumem o papel modulador5.

Por ser a doença de Chagas um processo patológico infeccioso, com repercussões hemodinâmicas, foi proposta a hipótese de uma possível modificação do peso do baço, respondendo não só ao envolvimento cardíaco, como também ao processo inflamatório crônico sistêmico. Assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar comparativamente o peso do baço em indivíduos chagásicos crônicos ou não-chagásicos, com ou sem insuficiência cardíaca congestiva.

MATERIAL E MÉTODOS

Em um estudo retrospectivo, foram consultados 3993 protocolos de necropsias completas, realizadas no Hospital Escola da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba, MG. Nesse estudo, foram selecionadas as necropsias de adultos, sendo pareados quanto à cor, à idade e ao sexo. Nestes protocolos, foi coletado o peso do baço de cada indivíduo.

Os casos selecionados foram divididos em quatro grupos: 1. chagásicos com ICC; 2. chagásicos sem ICC; 3. não-chagásicos com ICC; 4. não-chagásicos sem ICC.

Nesta classificação, baseada nos protocolos de necropsias, foram considerados chagásicos os indivíduos que apresentaram as reações de Machado-Guerreiro, imunofluorescência indireta e de hemaglutinação para T. cruzi positivas, realizadas no líquido pericárdico colhido à necropsia. Os critérios de inclusão para os grupos com ICC foram a presença de órgãos cardíacos e anasarca, além das alterações cardíacas características. Foram excluídos os casos de neoplasias, entre elas as leucemias e os linfomas, as inflamações sistêmicas agudas ou crônicas graves, tais como, endocardites, pneumonites e leptomeningites e quaisquer outras doenças que pudessem interferir no peso do baço por desenvolver hipertensão porta, observada por exemplo, nos casos de cirrose e esquistossomose hepáticas.

A análise estatística foi feita através dos testes t de Student, e U de Mann-Whitney. As diferenças observadas foram consideradas significantes quando a probabilidade de rejeição da hipótese de nulidade foi menor que 0,05 (5%).

RESULTADOS

Foram selecionados 88 casos que preenchiam as condições pretendidas. A idade média foi 44,9 ± 15,4 anos, sendo 53,4% brancos e 70,5% do sexo masculino, não havendo diferença significante destas variáveis entre os grupos. A Tabela 1 mostra o peso do baço em indivíduos chagásicos ou não-chagásicos, com ou sem ICC. O peso do baço foi significantemente maior nos pacientes chagásicos sem ICC, quando comparados com os não-chagásicos sem ICC (Teste de Mann-Whitney entre chagásicos e não-chagásicos sem ICC, U = 4,397; p = 0,036).

DISCUSSÃO

No presente estudo, o peso do baço nos indivíduos sem ICC foi significativamente maior entre os chagásicos, quando comparados aos não-chagásicos. Na literatura não foi encontrada nenhuma referência à esplenomegalia na fase crônica da doença de Chagas. Entretanto, este aumento já foi observado na fase aguda da doença humana14 17.

Myers e cols15 descreveram que o peso do baço adulto normal pode ser variável, com limites de normalidade incertos e não concordantes nos vários estudos de revisão. Estes autores, analisando 366 baços de vítimas de morte acidental, sem apresentarem qualquer doença prévia, observaram que o peso do baço foi maior em indivíduos jovens, brancos e do sexo masculino. Observaram ainda, que com relação ao peso normal, houve uma variação de 35 gramas em mulher negra para 280 gramas em homem branco, com idade inferior a 25 anos. Contudo, Scothorne19 não encontrou evidências de influência da idade com relação especificamente ao volume da polpa branca. Ainda assim, no presente trabalho, os indivíduos foram pareados quanto ao sexo, a idade e a cor.

Na fase aguda experimental da doença de Chagas, o aumento do baço tem sido explicado pela alta reatividade, comprovada pela hiperplasia dos centros germinativos4 8, proliferação de linfócitos4, produção de anticorpos2 e expansão dos folículos linfóides6 8. Por outro lado, Carvalho Filho e cols7, analisando 24 casos de necropsias de pacientes portadores da forma grave de estrongiloidíase, associada ou não a uma doença preexistente, encontraram diminuição do peso do baço, atrofia dos folículos linfóides com ausência de centros germinativos, presença de plasmócitos e neutrófilos, hiperplasia de células reticulares, grumos bacterianos, às vezes com formação de micro-abscessos.

O parasitismo esplênico observado na fase aguda experimental da doença de Chagas, às vezes é intenso16. No entanto, a esplenectomia não modifica a parasitemia, tanto na fase aguda quanto na crônica. Demonstrou-se ainda que há participação do baço na produção de anticorpos na fase aguda, porém sem influenciar o curso da infecção13.

O aumento do peso do baço nos chagásicos crônicos que apresentam ICC, poderia ser conseqüente não apenas ao fator hemodinâmico, mas também um reflexo da resposta sistêmica à infecção chagásica. Esta resposta poderia ser explicada pela persistência do T. cruzi ou de seus antígenos no baço, como já foi comprovada em outros órgãos1 3 11 20. Isto implicaria em um aumento da neoformação de tecido conjuntivo, no afluxo e na circulação leucocitária, que contribuiriam para o aumento do peso esplênico.

No presente estudo, os resultados sugerem que o componente inflamatório na doença de Chagas humana desempenharia papel importante no aumento do peso do baço, juntamente com as alterações hemodinâmicas decorrentes da ICC. É possível que após a esplenomegalia da fase aguda, o peso do baço diminua com o desenvolvimento da fase crônica, entretanto, sem voltar aos valores observados em controles. Talvez este aumento do peso esplênico possa refletir a modulação do sistema mononuclear fagocitário deste órgão na fase crônica da doença de Chagas.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Maria Prado de Morais, Maria Helena Costa Batista, Aloísio Costa e Leônidas Venâncio da Cunha, pelos serviços técnicos prestados, e ao Dr. Giovanni Franchin pelas críticas e sugestões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido para publicação em 15/5/98.