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Reativação da infecção por Trypanosoma cruzi em paciente com síndrome de imunodeficiência adquirida

Maria Clara Gutierrez Galhardo, Ivana A. Martins, Alejandro Hasslocher- Moreno, Sérgio Salles Xavier, Janice Mery Chicarino Coelho, Angela Cristina Veríssimo Junqueira e Ricardo Ribeiro dos Santos

Laboratório de Pesquisa Clínica e de Anatomia Patológica do Centro de Pesquisa do Hospital Evandro Chagas e Departamento de Medicina Tropical, Laboratório de Imunopatologia do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

DOI: 10.1590/S0037-86821999000300011


Resumo Uma paciente com síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) e doença de Chagas, com xenodiagnóstico positivo, estava em uso prolongado de cetoconazol com o objetivo de suprimir a parasitemia e prevenir a reativação da doença de Chagas. O cetoconazol foi suspenso inadvertidamente após 6 meses de uso. Um mês após, a paciente foi internada com febre, cefaléia, vômitos, taquicardia e hepatoesplenomegalia. Tanto o xenodiagnóstico como o exame de sangue a fresco demonstraram a presença de Trypanosoma cruzi. O tratamento com benzonidazol foi instituído, com supressão da parasitemia. A paciente desenvolveu concomitantemente uma provável neurotoxoplasmose, evoluindo para o óbito em septicemia. À necropsia, não foram encontrados parasitas. 
Palavras-chaves: HIV. SIDA. Doença de Chagas. Trypanosoma cruzi. Miocardite. Meningoencefalite.

Abstract A patient with AIDS and asymptomatic Chagas’s disease and positive xenodiagnosis was taking ketoconazole in order to supress parasitemia and prevent reactivation of Chagas’s disease. Ketoconazole was unplanned suspended after 6 months, and the patient was admitted with fever, headache, vomiting, tachycardia, postural hypotension, hepatosplenomegaly, and positive xenodiagnosis one month later. Treatment with benzonidazole was begun leading to supression of parasitemia. The patient had probabily a neurotoxoplasmosis associated and progressed to coma and death with sepsis. No parasite was found in autopsy. 
Key-words: HIV. AIDS. Chagas’ disease. Trypanosoma cruzi. Myocarditis. Meningoencephalitis.

 

 

A reativação da doença de Chagas tem sido relacionada a situações que induzem imunodepressão, como neoplasias, drogas e, atualmente, a infecção pelo HIV1 5 7 9 14.

A reativação da doença de Chagas representa em muitas vezes a primeira infecção oportunística nos pacientes com infecção pelo HIV e a meningoencefalite e/ou miocardite são as principais manifestações clínicas2 3 5 11 12. Embora o diagnóstico seja estabelecido e o tratamento específico instituído, a progressão é muitas vezes fatal4 15.

O caso clínico descrito a seguir se refere a paciente com SIDA e reativação da doença de Chagas.

 

RELATO DO CASO

I.L., feminina, 45 anos, natural da Bahia, com diagnóstico de doença de Chagas na forma indeterminada, encontrava-se em controle ambulatorial desde 1987, com sorologia positiva (IFI = 1/160, HA = 1/1280 e ELISA = 1/1280) e xenodiagnósticos positivos em outubro de 1987, janeiro e dezembro de 1989 (5%, 2,5% e 27,5% de ninfas positivas respectivamente). Em abril de 1990, foi realizada biópsia de gânglio cervical, que se encontrava-se aumentado, cujo exame microscópico sugeria infecção pelo HIV confirmada por sorologia (2 ELISAS e 1 IFI). Não sofrera hemotransfusões, negava uso de drogas injetáveis e o parceiro de então não era portador do HIV. Como neste ano a paciente apresentou uma infeção oportunística definidora de SIDA (diarréia por Isospora belli) optou-se pelo uso do cetoconazol na dose de 400mg/dia por tempo prolongado com o objetivo de suprimir a parasitemia por Trypanosoma cruzi(T. cruzi) e evitar a reativação da infecção. Após 70 dias de tratamento, o xenodiagnóstico de controle foi negativo. A paciente interrompeu por conta própria o cetoconazol após 6 meses; um mês após a suspensão, foi internada com febre, cefaléia, vômitos, taquicardia, hipotensão postural, hepatoesplenomegalia e rigidez de nuca. O exame do líquor revelou antígeno de T. cruzi utilizando IgG policlonal anti-T. cruzi (técnica de DOT-ELISA), apesar de o exame a fresco do líquor ter sido negativo. A pesquisa de tripomastigotas em gota fresca, gota espessa corada de sangue periférico e por xenodiagnóstico foi positiva (40% de ninfas positivas). Os eletrocardiogramas seriados e o ecocardiograma foram compatíveis com miocardite. Caracterizado o quadro clínico como reativação da doença de Chagas, iniciou-se benzonidazol (200mg/dia). No quarto dia de tratamento, não foram encontrados mais parasitas (gota fresca espessa e xenodiagnóstico). Apesar da negativação da parasitemia, a paciente apresentou deterioração do quadro neurológico, com sinais de localização. A tomografia computadorizada de crânio revelou lesão hipodensa, sem captar contraste, no tálamo à direita. Como a paciente havia apresentado melhora do quadro da doença de Chagas, optamos pelo tratamento empírico para neurotoxoplasmose devido a sorologia positiva para toxoplasmose (IFI 1/1024) a localização em tálamo e por ser a neurotoxoplasmose a principal causa de massa intracraniana em pacientes com SIDA.

O benzonidazol foi mantido por 45 dias, sendo substituído pelo cetoconazol 400mg/dia como tratamento supressivo. Após a melhora clínica inicial, houve nova deterioração do quadro neurológico, e a paciente evoluiu para o óbito.

A necrópsia mostrou coração macroscopicamente normal, com miocardite e pericardite crônicas e a microscopia, não havia parasitas. Foram realizadas reações de imunohistoquímica pelo método da peroxidase (avidina-biotina) utilizando-se anticorpos policlonais anti-T. cruzi (cepa Y processados pelo IOC/FIOCRUZ) e anti-Toxoplasma gondii (ABC vector), que foram negativas.

O exame do encéfalo revelou leptomeninges delgadas e transparentes, pouco congestas. Aos cortes frontais sucessivos, os ventrículos tinham a capacidade habitual e notavam-se áreas arredondadas ou irregularmente necróticas e/ou císticas à direita e nos gânglios basais bilateralmente; tais áreas exibiam histologicamente, necrose com perda de substância e formação de cavidades contendo macrófagos de citoplasma abundante, e reação astrocitária na periferia. Lesões de padrão histológico similar foram vistas em córtex cerebral, substância branca dos hemisférios cerebrais e cerebelares na ganglia basal, tálamo, cápsula interna, mesencéfalo, ao nível do lemnisco médio, e tegmento da ponte. Também não foram encontrados parasitos. Não foram realizados por problemas técnicos cortes em tubo digestivo. Havia adrenalite por citomegalovírus e broncopneumonia.

 

DISCUSSÃO

Embora seja controverso o uso de tripanossomicidas na fase crônica da doença de Chagas, a gravidade e o prognóstico reservado dos casos descritos de reativação da doença de Chagas em imunossuprimidos, motivaram-nos o tratamento inicial com cetoconazol nesta paciente que apresentava xenodiagnóstico positivo na vigência de imunodepressão associada à infecção pelo HIV. Tal opção de tratamento foi baseada na sensibilidade de algumas cepas de T. cruzi ao cetoconazol e no fato de esta ser uma droga menos tóxica que as demais drogas tripanossomicidas disponíveis8. Pareceu-nos que o cetoconazol foi capaz de controlar a parasitemia, pois todos os xenodiagnósticos anteriores ao uso de drogas tripanossomicidas eram positivos e, coincidentemente, um mês após a suspensão do medicamento, a paciente apresentou miocardite e comprometimento do SNC com intensa parasitemia, tal como é observado nos casos de reativação da doença de Chagas4 9 10 12 15 18.

O tratamento com benzonidazol resultou em negativação da parasitemia, sem melhora clínica devido a uma possível associação com neurotoxoplasmose.

À necropsia, de modo semelhante a outros casos tratados de reativação da doença de Chagas associado a SIDA, não foram encontrados parasitas e os achados microscópicos não permitiram distinguir toxoplasmose, doença de Chagas (ou do próprio HIV, no caso da miocardite)4 10 13.

Acreditamos que, nesta paciente, o HIV modificou o curso da doença de Chagas, assim como a infecção crônica pelo T. cruzi agravou a imunodepressão pelo HIV, fato este já observado experimentalmente17. Portanto, é importante ficar atento aos casos de reativação da doença de Chagas em nosso meio, devendo o T. cruzi ser considerado um patógeno oportunístico, e nos casos de co-infecção pelo HIV, a reativação da doença de Chagas ser critério de SIDA2 12. Finalmente, alertamos que, com a expansão da infecção pelo HIV na população residente nas grandes cidades e a urbanização da doença de Chagas, resultante da migração dos indivíduos infectados da região rural, novos casos de infecção concomitante poderão surgir. Isto poderá ser agravado pela transmissão de ambos os patógenos por transfusão sangüínea e/ou hemoderivados, conseqüência do erro das sorologias empregadas ou mesmo falta de um rigoroso controle dos doadores de sangue16.

 

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Laboratório de Pesquisa Clínica e de Anatomia Patológica do Centro de Pesquisa do Hospital Evandro Chagas e Departamento de Medicina Tropical, Laboratório de Imunopatologia do Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência: Drª Maria Clara Gutierrez Galhardo. Centro de Pesquisa do Hospital Evandro Chagas/FIOCRUZ. Av. Brasil 4365, 21045-900 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Fax 55 21 590-9988.
Recebido para publicação em 10/7/98.