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Forma tumoral encefálica esquistossomótica: apresentação de um caso tratado cirurgicamente

Luiz A. Ferreira, Francisco Lucio C. Lima, Maria do Rosário O. dos Anjos e Jackson M. L. Costa

Núcleo de Patologia e Medicina Social do departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luis , MA ,Brasil.

DOI: 10.1590/S0037-86821998000100011


Resumo Os relatos da esquistossomose mansônica acometendo o sistema nervoso central (SNC) são pouco frequentes, sendo raramente descrito no encéfalo, onde os ovos do Schistosoma mansoni usualmente provocam reação granulomatosa comportando-se como lesão expansiva. Um paciente do sexo masculino, procedente de São Vicente de Ferrer, Baixada Ocidental Maranhense, área endêmica da doença, 27 anos de idade, apresentou tumor no cerebelo, o qual foi tratado cirurgicamente. O estudo histopatológico da lesão cerebelar, demonstrou extensa reação granulomatosa ao redor de ovos em desintegração de Schistosoma mansoni. Os granulomas exibiam diferentes estágios de evolução, desde necrótico exsudativo até produtivo. Este caso representa o primeiro de neuroesquistossomose relatado no estado do Maranhão. A evolução pós-operatória do paciente caracterizou-se por déficit e incoordenação motora dos membros superior e inferior direito associado a tremores.
Palavras-chaves: Forma tumoral. Esquistossomose mansônica. Encéfalo. Estado do Maranhão.

Abstract The involvement of the central nervous system in the Schistosomiasis mansoni is uncommon and in the literature exist few reports in relation this ocurrence in the brain, in that the schistosoma eggs, usually promote a granulomatous reaction that remember an expansive tumour. A patient, male sex, from São Vicente de Ferrer (MA), 27 years old, had a tumour in the cerebellum, that had cirurgical therapy. Later histological studies of the cerebellar material of the patient, demonstrated an extensive granulomatous reaction around schistosoma eggs. The granulomatous reaction present different stages of evolution, since degenerative necrosis to organization granulomatous reaction. This is the first report from Maranhão (Brazil). The evolution of the patient was caracterized for incordination of members and trembles.
Key-words: Tumoral form. Schistosomiasis mansoni. Cerebellum. Maranhão state.

A esquistossomose, nos seus diversos tipos, é uma parasitose que afeta em torno de 300 milhões de indivíduos em diversos continentes, constituindo-se na segunda maior endemia parasitária do mundo2 13 14 15.

Schistosoma mansoni é a única espécie existente nas Américas. Inicialmente se fixou nas Antilhas, Guianas, Venezuela e posteriomente, no Brasil. Em nosso país a doença atinge cerca de 10 a 12 milhões de indivíduos, ocorrendo predominantemente em comunidades rurais, com expansão para os centros urbanos, estando intimamente relacionada com precárias condições higiênicas e inadequados recursos sanitários. O Nordeste brasileiro constitui-se na principal área endêmica do país, destacando-se os estados da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Alagoas e Sergipe como as principais áreas da doença17.

No Maranhão a esquistossomose mansônica vem sendo observada desde 1920 e constitui relevante problema de saúde pública, apresentando focos em diversas regiões e uma área endêmica, a Baixada Ocidental Maranhense1. Esta região caracteriza-se por ter uma fauna e flora constituídas por um misto das regiões Norte e Nordeste, sendo uma das regiões economicamente mais pobres do Maranhão, com a população sobrevivendo as custas dos lagos naturais, da pesca, da caça, lavoura e pecuária de pequeno porte. Dessa forma, o homem da Baixada Maranhense, devido ao seu trabalho, vive em contato permanente com águas contaminadas pelo S. mansoni, onde um dos reservatórios é o rato (Holochilus braziliensis nanus Thomas, 1897), constituindo-se a Esquistossomose uma doença ocupacional naquela região15.

Apesar do caráter sistêmico a esquistossomose mansônica no que diz respeito ao comprometimento encefálico é rara, não tendo frequência bem definida, sendo descrito sobretudo na espécie S. japonicum 18.

O primeiro registro, descrevendo a localização cerebral de ovos de Schistosoma, foi feita por Yamagiwa em 1889. Em breve histórico da neuroesquistossomose, Brito e cols6 atribuem a Müller e Stender em 1930, a primeira descrição de ovos de S. mansoni na medula espinhal, num caso de mielite transversa observado em um alemão que havia residido por alguns anos no Brasil, sendo que em nosso país coube a Gama e Sá em 1945 o primeiro relato da retirada de um granuloma esquistossomótico da médula de um paraplégico8.

A literatura é unânime em afirmar que a espécie S. japonicum acomete mais freqüentemente o encéfalo, enquanto que o S. mansoni e S. hematobium prevalecem na medula espinhal2 3 4.

A deposição dos ovos pode ocorrer em qualquer área do encéfalo ou da médula, levando em geral a formação de granulomas. Contudo, as alterações caracterizam-se desde lesões microscópicas discretas e insuficientes para causar manifestações clínicas até quadros graves de mielite transversa, de tumor medular, quadro de epilepsia, síndromes deficitárias, hipertensão intracraniana e hemorragia cerebral maciça, podendo levar a morte2 19.

O presente trabalho registra o primeiro caso de neuroesquistossomose em paciente proveniente do Estado do Maranhão, sendo de relevante importância a divulgação das manifestações neurológicas e chamar a atenção dos clínicos que trabalham nas áreas endêmicas quanto às manifestações com que se apresenta a doença.

RELATO DO CASO

P.S.S, 27anos, masculino, branco, solteiro, policial militar, procedente de São Vicente de Ferrer (Baixada Ocidental Maranhense), data da internação 15.06.94. Aproximadamente 4 meses antes apresentou febre acompanhada de cefaléia de leve intensidade, naúseas e vômitos ocasionais, anorexia, emagrecimento, dor epigástrica tipo cólica, assim como episódios diarréicos freqüentes. Internou-se no Hospital Beneficiente da Policia Militar, fazendo tratamento sintomático, sem diagnóstico conclusivo. Permaneceu internado por duas semanas, obtendo relativa melhora dos sintomas e alta hospitalar. Posteriormente, a sintomatologia reapareceu e na mesma ocasião o exame parasitológico de fezes confirmou a presença de ovos de S. mansoni. Fez tratamento orientado pela Fundação Nacional de Saúde (FNS-MA) no próprio município com Oxamaniquine em dose única, ocorrendo remissão da sintomatologia em poucos dias .

Após um mês começou a apresentar cefaléia occipital, inicialmente de leve intensidade, até tornar-se severa, náuseas, vômitos, dificuldade de deambulação e, posteriormente, transtornos visuais. Internou-se em um hospital do interior do Estado por uma semana não havendo melhora, quando então procurou serviço especializado em São Luis (MA). No exame neurológico foi observado síndrome cerebelar à direita, edema de papila bilateral. O exame tomográfico do crânio revelou processo tumoral no cerebelo.

Internou-se no Hospital Universitário Presidente Dutra da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), para tratamento cirúrgico do referido tumor, com exérese completa do mesmo em 17.06.94. Como antecedentes epidemiológicos o paciente relata banhos e pesca em lagoas de São Vicente de Ferrer (MA), região endêmica de esquistossomose, há cerca de um mês antes do início de sua doença.

Exames laboratoriais e evolução do caso: tomografia axial de crânio (04.06.94) revelou área isodensa captante com halo de edema no hemisfério cerebelar direito com efeito de massa, comprimindo e desviando o IV ventrículo e cisterna quadrigeminal e dilatação moderada dos ventrículos laterais e III ventríulo (Figura 1). Biópsia retal (24.08.94): no exame a fresco do fragmento de mucosa retal não se demonstrou ovos de Schistosoma mansoni. Relatório anatomopatológico do material retirado cirurgicamente do cerebelo do paciente: o exame histopatológico revelou secções de fragmentos de tecido nervoso cerebelar exibindo reação inflamatória crônica granulomatosa, com granulomas em diferentes fases de evolução (Figuras 23 e 4). Outras áreas exibiam congestão, focos hemorrágicos e reação glial. Após a cirurgia evoluiu favoravelmente, apresentando apenas alguns picos febris e episódios de vômitos. Alta hospitalar em 10.07.94, apresentando como sequelas: tremores, déficit e incordenação motora dos membros superior e inferior direitos que persistem até o presente momento.

DISCUSSÃO

A neuroesquistossomose é considerada rara pela literatura mundial e ainda não tem sua frequência totalmente estabelecida, principalmente pela falta de comprovação histológica em grande número de casos publicados. Contudo existe extensa literatura a respeito do assunto, desde o primeiro caso histologicamente comprovado há mais de um século6 7 9.

Em 1963, Marcial-Rojas e cols13, após revisar a literatura mundial, encontraram 97 casos de envolvimento de SNC por Schistosoma, sendo 26 por S. mansoni, dos quais 17 envolvendo a médula espinhal e 9 o cérebro. Nesse mesmo estudo os autores demonstraram a correlação entre o local de acometimento do sistema nervoso com a espécie parasitária. O S. japonicum é responsável pela maioria dos casos relatados e prevalece no encéfalo, enquanto S. mansoni e S. haematobium prevalecem na médula. Acredita-se que a predominância do S. japonicum nas lesões neurológicas, deve-se ao fato de que a fêmea desta espécie libera um número maior de ovos que as outras espécies.

Queirós18 em 1974 ao realizar necrópsias em 10 pacientes esquistossomóticos encontrou ovos do parasita no SNC de todos eles, contudo apenas um paciente apresentava sintomatologia neurológica. Pitella e Lana-Peixoto16 17 em 1981, demonstraram que 26% de 46 pacientes com esquistossomose hepatoesplênica apresentavam extensa deposição de ovos no cerebro, somente um com sintomas neurológicos. Estes estudos de necrópsia mostraram que o envolvimento do SNC na esquistossomose mansônica parece ser mais frequente do que se acredita, mesmo que apenas uma minoria de casos apresente sintomatologia neurológica.

Acredita-se que o Schistosoma mansoni alcance o SNC através de vários mecanismos. Na primeira, os ovos são conduzidos através dos plexos venosos de Batson, onde existem anastomoses desprovidas de válvulas entre as veias pélvicas e os plexos perimedulares, podendo então alcançar a médula e o cérebro. Isto pode ser facilitado pelo aumento da pressão intra-abdominal. A grande incidência de mielopatia acometendo a região lombossacra seria explicada por via de chegada. Ou então, os vermes adultos migrariam de maneira anômala, depositando grande quantidade de ovos no interior dos vasos do sistema nervoso. Esta hipótese é favorecida pelo encontro de ovos enfileirados e vermes adultos no tecido nervoso e no interior dos vasos perimedulares. A vigência de hipertensão pulmonar e comunicação cardíaca direita-esquerda também pode ser causa de embolização de ovos do Schistosoma até o SNC10 11 20.

Os ovos podem acumular-se em determinadas áreas do SNC e produzir uma reação ao seu redor suficiente para formar numerosos granulomas que agirão como lesão expansiva, como foi observado em nosso caso.

Ao que tudo indica, na neuroesquistossomose como nas demais formas da parasitose participam os dois mecanismos imunitários, o celular e o humoral. A formação de granulomas é determinada por reação celular do tipo hipersensibilidade tardia. As lesões produzidas pelo parasita dependem do grau de infestação e da resposta imunológica, geral e local do hospedeiro. Isso sugere que as pessoas parasitadas não residentes em áreas endêmicas estão mais propensas a desenvolver formas agudas mais graves. Em relação ao caso descrito, embora o paciente procedesse de área endêmica, a ocorrência de sintomas bastante sugestivos de esquistossomose aguda, leva a crer contato recente do mesmo com o S. mansoni 8 12 19.

As manifestações neurológicas usualmente apresentam-se na ausência de qualquer outra manifestação da doença e, em poucos casos, são precedidas de manifestações agudas da esquistossomose. O diagnóstico de neuroesquistosomose deve ser suspeitado em pacientes que possam ter tido contato com o parasita em área endêmica e que apresentam manifestação neurológica encefálica, medular ou meníngea, onde não se encontrou outra causa. A tomografia computadorizada do crânio pode ser valiosa ao localizar lesões expansivas que podem corresponder a granulomas. O exame histopatológico do material ressecado cirurgicamente, mostrando o granuloma circundando o ovo de Schistosomaé a única prova de certeza como observado em nosso caso17 20.

No que diz respeito à terapêutica da neuroesquistossomose os autores usam de um modo geral corticosteróides, sobretudo dexametasona e predinisona, associados com os esquistossomicidas oxamaniquine ou praziquentel. O tratamento cirúrgico, seguido de tratamento clínico antiesquistossomótico, tem sido feito no caso de granulomas cerebrais ou cerebelares, consistindo na excisão dos mesmos. No presente caso, o tratamento foi cirúrgico, conduta considerada correta, mesmo sem que houvesse a suspeita inicial de neuroesquistossomose, levando a possibilidade de tratamento clínico imediato.

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Núcleo de Patologia e Medicina Social do departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luis , MA ,Brasil.
Endereço para correspondencia: Prof. Luiz A. Ferreira. Dept Patologia/FM/UFMA. Praça Madre Deus 2, 65025-560 São Luis, MA.
Fax (098) 222-5135

Recebido para publicação em 26/05/97.