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Relato de um caso de latrodectismo ocorrido em Manaus, Amazonas, Brasil

Alcidéa R. B. de Souza, Paulo F. Bührnheim e Cinira S. C. Lima

Núcleo de Animais Peçonhentos, Instituto de Medicina Tropical do Amazonas e Laboratório de Zoologia, Departamento de Biologia, Universidade do Amazonas, Manaus, AM

DOI: 10.1590/S0037-86821998000100012


Resumo Em 02/07/1995, foi atendido no Instituto de Medicina Tropical do Amazonas, paciente masculino, 11 anos, acidentado em Manaus, por picada na região retroauricular direita, clínicamente compatível com aquele causado por Latrodectus. Observavam-se abalos musculares, febre, calafrios e sudorese intensa. Instituída terapêutica com neostigmine precedido de atropina, gluconato de cálcio, cimetidina, diazepam e hidrocortisona. No terceiro dia apresentava-se melhorado, consciente, orientado e com diminuição importante do edema palpebral. A despeito de uma melhora progressiva diária, no quinto dia surgiu eritema máculo-pápulo-vesiculoso. Em 14/07/1995 teve alta, assintomático. O caso relatado é o primeiro descrito na região Amazônica, ocorrido na periferia de Manaus e pode ter sido uma consequência da expansão urbana das duas últimas décadas.
Palavras-chaves: Latrodectus curacaviensis. Latrodectismo humano. Amazonas. Clínica. Terapêutica.

Abstract In July 2, 1995 arrived at the Instituto de Medicina Tropical do Amazonas an eleven-year-old male with complaining of spider bite on his right retroauricular region, presenting typical findings of latrodectism. The accident was reported as having ocurred in the suburbs of Manaus. The patient was given neostigmine preceded by atropin, calcium gluconate, cimetidin, diazepan and hidrocortisone. Within three days the patient showed improvement, and was aware, orientated and with significant palpebral oedem reduction. Muscle spasms are still present, as well as fever, shivering, and intense sweating. In spite of a daily progressive improvement, at the fifth day appeared a spotted papular erythem. The patient was discharged without simptoms after the13th day. This is the first such reported case which took place in Amazonian region, it might have been happened a consequence of the urban sprawl wich has characterized the growth of the city of Manaus, in the last twenty years. It is not possible at this point to evaluate the epidemiolgical resounds of the event, but in any case, it seems plausible to recommend that black widow antivenom become avaiable. 
Key-words: Latrodectus curacaviensis. Human latrodectism. Amazonas State. Clínic. Treatment.

Apesar de não haver relatos de acidentes ocasionados por viúvas-negras no Amazonas, ocorrem em Manaus duas espécies destas aranhas do gênero Latrodectus Walckenaer, 1805 (Araneae, Theridiidae), L. curacaviensis (Müller, 1776) (= L. geographicus Hasselt, 1888) e L. geometricus Koch, 18414 12. Até a presente data, foram relatados no Brasil 81 acidentes ocasionados por L. curacaviensis, 77 no Estado da Bahia (95%)15, três no Rio de Janeiro9 e um em Agudos, São Paulo18L. geometricus tem veneno pouco tóxico para o homem3 e tem abdome marrom manchado de amarelo alaranjado, diferente de L. curacaviensis, cujo abdome é preto manchado de vermelho.

Latrodectus mactans (Fabricius, 1775) e subespécies nunca foram assinaladas nos estados amazônicos, apesar de assim terem sido identificados exemplares do Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo e de uma localidade ao norte da Bahia, e também de localidades no sul do Peru, bem como de Assunção no Paraguai4.

Clínica e terapêutica do latrodectismo. O latrodectismo é a síndrome específica que resulta do envenenamento provocado pela picada da aranha viúva-negra (Latrodectus spp).

Caracteristicamente, o quadro clínico inicia-se de forma aguda, em um intervalo de tempo de 15 a 30 minutos da picada1, com dor local intensa, irradiante. Pode não haver alterações na região corporal da picada. Quando elas ocorrem são discretas, resumindo-se a edema e rubor. Não há ocorrência de bolhas, equimose ou necrose. O acometimento muscular é caracterizado por tremores, fasciculações, mialgias generalizadas e contraturas. Há descrições de trismo e opistótono10. A dor e rigidez da musculatura abdominal14 podem simular abdome agudo. Há febre, calafrios, sudorese, sialorréia, sede, náuseas, vômitos e excitação psicomotora. Podem ocorrer taquicardia, hipertensão, arritmia cardíaca e choque. São descritas ainda, oligúria e anúria. Há relatos de priapismo15 16. Alguns dias depois pode ocorrer uma erupção cutânea generalizada ou não, que assume várias formas, desde um eritema morbiliforme ou escarlatiniforme, até erupções máculo-pápulo-vesiculosas7 11 13.

Há descrição de um facies latrodéctico que se caracteriza por blefaroconjuntivite, edema palpebral bilateral, hiperemia de face e colo, trismo e midríase7 11 13. Esteso 5 descreve um quadro clínico sequencial ao envenenamento por picada de Latrodectus, que chama de História Natural do Envenenamento:

– Etapa de absorção; por via hematolinfática, iniciando-se os sintomas em minutos, tendo duas horas como tempo máximo. Surge sensação de alfinetadas no local da picada, que, algumas vezes, apresenta-se como um ponto vermelho e outras vezes não se percebe. Sobrevém então o sintoma guia que é a mialgia regional, tendendo a generalizar-se. Há um estado de decaimento, tristeza. O paciente tem clara noção de gravidade. Surgem contraturas musculares.

– Etapa de difusão; generalização do envenenamento. Manifestam-se os sintomas neurovegetativos, com espasmos de vísceras ocas, parestesias, sialorréia, lacrimejamento, taquicardia, taquipnéia, midríase, nervosismo intenso. Surge febre. As contraturas se alternam com períodos de acalmia. Evidência de hiperestesia cutânea. Hiperreflexia osteotendinosa. Há sede intensa. O paciente tem a sensação de morte iminente.

– Etapa de declínio; marca o início do metabolismo do veneno. Traduz-se clínicamente pelo declínio do quadro, com franca atenuação do mesmo, ocorrendo em 48 a 72 horas de evolução, até 6 dias.

Há referências sobre lesões generalizadas dos rins, fígado, baço, linfonodos, timo e supra-renais17.

Rodrigues e Brazil Nunes13 caracterizam a “síndrome latrodectísmica” em dor, edema e hiperemia local, sudorese, agitação, ansiedade, parestesia, mialgia, dificuldade de deambulação e hiperermia ocular.

A literatura refere-se aos óbitos como excepcionais. Quando ocorrem, são devidos a insuficiência repiratória5 7 13 17.

Os exames laboratoriais tais como hemograma, ionograma, glicemia, provas de função renal e hepática, radiografia do tórax e eletrocardiograma são úteis para avaliar o estado geral do paciente. Observa-se em geral, leucocitose com neutrofilia. Glicemia e uréia sanguínea encontram-se freqüentemente aumentadas13.

Atualmente, não é produzido o soro anti-latrodéctico no Brasil. O tratamento é feito com neostigmina, que parece bloquear os pricipais efeitos neurotóxicos do veneno1 7 8 13. O gluconato de cálcio tem sido utilizado para reduzir a dor e os espasmos musculares2 7 8 10 11 13. São ainda usados analgésicos, ansiolíticos e miorrelaxantes.

Não há medidas profiláticas concretas. As aranhas viúvas-negras são facilmente eliminadas com inseticidas comuns e limpeza habitual, sendo certas vespas (himenópteros) seus inimigos naturais3 5 6.

Observou-se também que pacientes picados anteriormente, desenvolviam um quadro bastante atenuado, sugerindo que a picada de aranhas deste gênero confere certo grau de imunidade1 13.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 11 anos, estudante, procedente do bairro Cidade Nova, Manaus, Amazonas, referindo ter sido picado por aranha que descreveu como pequena e manchada de vermelho. Não trouxe o animal, mas achou semelhança com a aranha que o acidentou em um exemplar vivo de Latrodectus curacaviensis, coletado no mês anterior em Manaus, na área do Campus da Universidade do Amazonas, que lhe foi mostrado. O acidente aconteceu sob uma árvore, à margem de um campo de futebol, num acampamento de escoteiros na periferia da cidade, às 13 horas do dia 02 de julho de 1995, sendo o local da picada a região retroauricular esquerda. Evoluiu com dores na região dorsal e lombar e em membros inferiores. Chegou ao Hospital Nelson Antunes, no Instituto de Medicina Tropical do Amazonas, às 15 horas e trinta, evoluindo com cefaléia, epigastralgia, náuseas, vômitos, dor abdominal difusa em cólicas, febre, sudorese, tremores e delírios. F.R.= 40 ir/min., PA = 130 x 80mmHg. Apresentava abalos musculares generalizados, alternando agitação psicomotora com sonolência. Hiperemia conjuntival, edema facial e periorbitário. Rubor facial. Lesão puntiforme eritematosa na região mastóidea direita. Pupilas isocóricas e fotorreagentes. Abdome distendido e rígido, doloroso à palpação. No IMT-AM, foi instituida terapêutica com neostigmine precedido de atropina, gluconato de cálcio, cimetidina, diazepam e hidrocortisona. No terceiro dia de internação apresentava-se melhorado, consciente, orientado e com diminuição importante do edema palpebral. Observavam-se ainda abalos musculares, febre, calafrios e sudorese intensa. Melhora progressiva diária. No quinto dia de internação surgiu eritema máculo-pápulo-vesiculoso, que contaminou com Staphylococcus aureus, sendo instituida terapêutica com cefalexina. No dia 14 de julho de 1995 foi dada alta com o paciente assintomático. Retornou uma semana depois para controle ambulatorial, sem nenhuma alteração.

DISCUSSÃO

A síndrome que acompanha o caso ocorrido em Manaus, como se pode observar, mantém semelhanças clínicas importantes com a síndrome latrodéctica descrita pelos vários autores. Este fato sugere que ela se apresenta da mesma maneira nas mais diferentes regiões, com possível independência de ter sido produzido por L. mactans ou L. curacaviensis. Conclusão também relevante é o fato de que o acidente ocorreu numa região geográfica onde nunca havia sido descrito caso semelhante, o que faz crer que a expansão das duas últimas décadas, acrescida do crescimento desordenado da periferia da cidade de Manaus, tenha contribuido para o acontecimento, cujas repercussões epidemiológicas ainda não podem ser avaliadas. Parece-nos entretanto mais seguro, que se possa dispor de soro anti-latrodéctico no País, mesmo a médio prazo, haja visto os excelentes resultados obtidos quando do seu emprego, somado ao fato do veneno não se fixar aos tecidos, podendo o tratamento específico ser iniciado em qualquer fase da evolução clínica5.

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Núcleo de Animais Peçonhentos, Instituto de Medicina Tropical do Amazonas e Laboratório de Zoologia, Departamento de Biologia, Universidade do Amazonas, Manaus, AM
Endereço para correspondência: Drª Alcidéa R.B. de Souza. Instituto de Medicina Tropical do Amazonas. Av. Pedro de Teixeira 25, 69040-000 Manaus, AM.
Recebido para publicação em 07/01/97.