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Alterações morfológicas da glândula supra-renal na síndrome da imunodeficiência adquirida

Francisco Moretti Duch, Cibele Alvarenga Répele, Fernanda Spadaro, Marlene Antônia dos Reis, Denise Bertulucci Rocha Rodrigues, Mara Lúcia da Fonseca Ferraz e Vicente de Paula Antunes Teixeira

Disciplinas de Patologia Geral da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro e da Universidade de Uberaba, Uberaba, Minas Gerais.

DOI: 10.1590/S0037-86821998000300002


Resumo Na síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) pode-se verificar o acometimento da supra-renal por efeito citopático direto pelo HIV, por infecções oportunistas ou neoplasias. Estes achados poderiam variar de acordo com a procedência do paciente, devido às doenças peculiares à região. Neste trabalho avaliou-se o comprometimento da supra-renal em quatorze pacientes que morreram de AIDS no Hospital Escola, em Uberaba. Treze eram do sexo masculino e treze brancos. A idade foi de 29,9 ± 7,8 anos e o índice de massa corporal foi de 19 ± 4,1kg/m2. Os fragmentos de supra-renal obtidos nas necropsias foram analisados em microscópio de luz. Encontramos inflamação em 100% dos casos, identificando-se o agente etiológico em oito (58,1%) casos. O Citomegalovírus foi identificado em sete casos, o Cryptococcus sp e o Herpes simplex em dois e o Histoplasma spem um caso, estes achados são semelhantes aos da literatura. Em um caso, encontramos calcificação do parênquima e em outro, flebite da veia central. Em alguns casos que apresentavam lesão não foi possível identificar o agente etiológico, talvez em decorrência do efeito citopático direto pelo HIV ou devido a toxicidade das drogas utilizadas no tratamento da AIDS e das infecções oportunistas.
Palavras-chaves: AIDS. Infecções oportunistas. Necropsia. Supra-renal.

Abstract In the acquired immunodeficiency syndrome (AIDS), the adrenal glands are subject to opportunistic infections, neoplasm or direct cytopathic effect by HIV. It is know that the incidence and type of adrenal involvement vary according to the patient’s place of origin. In this paper we evaluate adrenal involvement in fourteen patients that died from AIDS in the University Hospital of Uberaba, Brazil. The group studied was comprised of thirteen males and thirteen whites. The age was 29.9 ± 7.8 years, and the body mass index was 19.0 ± 4.1kg/m2. Adrenal specimens obtained from autopsies were analyzed by light microscopy. Inflammation was found in 100% of the cases and the etiologic agent(s) was (were) identified in eight (58.1%) patients. Citomegalovirus was identified in seven cases, Cryptococcus sp and Herpes simplex in two and Histoplasma sp in one case, these pathologic findings were similar to literature. We also found parenchymal calcification and adrenal central vein phlebitis in one case each. Injury was found in some cases without indentified infections agent. This fact could be due to the direct cytopathic effect by HIV, or due to toxicity of drug therapy used during treatment of AIDS and opportunistic infections.
Key-words: Adrenal gland. AIDS. Autopsy. Opportunistic infections.

 

 

As glândulas supra-renais são órgãos endócrinos complexos, pesando no adulto de 4 a 5g. Nos indivíduos falecidos após longos períodos de enfermidade elas podem estar alteradas, presumivelmente como resultado do estímulo do ACTH induzido pelo estresse3. A homeostase do organismo está relacionada, em grande parte, à função da supra-renal, particularmente devido aos hormônios e outros peptídeos produzidos nesta glândula7.

Nos EUA, mais de 80% dos casos de insuficiência da supra-renal são devidos à destruição auto-imunitária da glândula. É comum a presença de anticorpos dirigidos contra o córtex supra-renal e há evidências de anormalidade da imunidade celular13. Com exceção da tuberculose e da paracoccidioidomicose, são raras as inflamações que causam destruição da glândula a ponto de provocar hipocorticalismo. De fato, considera-se suficiente a conservação de um décimo da glândula para suprir as exigências do organismo. Antigamente a tuberculose era a causa mais comum de insuficiência crônica da supra-renal, representando agora apenas 10 a 20% dos casos. A histoplasmose pode também provocar destruição acentuada das supra-renais2. Já publicou-se também o acometimento desta glândula em várias doenças, tais como, na raiva, na sífilis, na criptococose, na toxoplasmose e na doença de Chagas1 4 12.

Atualmente estudam-se as alterações na supra-renal em decorrência da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), dentre elas, as manifestações endócrinas causadas pelo HIV e o efeito citopático direto pelo vírus, principalmente na medular devido ao tropismo do HIV pelo tecido neural. Destacam-se ainda as infecções oportunistas, principalmente pelo Citomegalovírus (CMV) e Mycobacterium avium. O mesmo autor chama a atenção também para o acometimento da própria glândula por neoplasias, p. ex., o sarcoma de Kaposi, além das alterações causadas por efeitos colaterais das drogas utilizadas no tratamento destes indivíduos9. Tem sido descrito ainda necrose e trombose de pequenos vasos tanto na cortical como na medular8. Nestes estudos, as manifestações podem variar de acordo com a procedência dos pacientes. Provavelmente isto se deva as doenças endêmicas ou não, peculiares àquelas regiões onde foram realizados os trabalhos.

O objetivo do presente trabalho foi avaliar através de métodos morfológicos o comprometimento da supra-renal dos pacientes com AIDS necropsiados em Uberaba, Minas Gerais.

MATERIAL E MÉTODOS

Em um estudo retrospectivo, foram revistos quatorze protocolos de um total de 221 necropsias, realizadas no período de 1990 a 1997, no Hospital Escola da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, em Uberaba (MG). Copilamos dos registros: a cor, a idade, o sexo e calculamos o índice de massa corporal (IMC), dado por peso corporal em quilogramas dividido pela altura expressa em metros ao quadrado.

Durante a necropsia foram coletados pelo menos dois fragmentos, sendo um de cada supra-renal. Estes foram processados rotineiramente em parafina, e as lâminas foram analisadas ao microscópio de luz. Além da coloração pela Hematoxilina-eosina, nos casos indicados realizamos as colorações histoquímicas suplementares necessárias (Picrosírius, Impregnações argênticas, Mucicarmin de Mayer).

RESULTADOS

A idade variou de 20 a 44 anos, com média de 29,9 ± 7,1 anos. Dos casos analisados treze eram do sexo masculino, treze brancos e apenas um não-branco. O IMC variou de 13,8kg/m2 a 28,6kg/m2, com média de 19,0 ± 4,1kg/m2.

Quanto aos processos patológicos observamos a inflamação, constituída por infiltrado predominantemente de mononucleares e escassos polimorfonucleares, em todos os casos. A hipotrofia foi encontrada em treze (92,8%) casos e pela necrose em nove (64,3%) casos. Em três casos encontramos fibrose da cortical e medular, sendo que em um deles estava associada a calcificação do parênquima. Em um caso encontramos flebite da veia central da supra-renal (Tabela 1).

O sítio mais comum de inflamação foi a medula, seguido do córtex e depois a cápsula (Tabela 2). Foi possível identificar o agente etiológico em oito (58,1%) deles. Encontramos o CMV em sete casos, o Cryptococcus sp e o Herpes simplex em dois e o Histoplasma sp em um. Em dois casos o CMV e o Cryptococcus sp estavam presentes concomitantemente, e em dois outros casos, o CMV e o Herpes simplex (Tabela 3).

A hipotrofia global ocorreu em treze (92,8%) casos, sendo que em doze deles o córtex foi a camada mais acometida (Tabela 2). A hemorragia observada em quatro (28,6%) casos, apresentou-se com intensidade discreta ou moderada, sendo que em um caso estava presente tanto na cápsula como na medula e no córtex. Em dois casos a hemorragia foi observada somente na medula e em um caso, somente na cápsula (Tabelas 1 e 2).

 

DISCUSSÃO

Nos quatorze pacientes necropsiados estudados encontramos inflamação em 100% dos casos, identificando-se o agente etiológico em oito (58,1%) deles. O CMV foi identificado em sete casos, o que representa 50% da casuística. Este resultado é semelhante aos descritos por Marks9, e muito próximo do encontrado no estudo feito por Gasglow e cols5. Estes últimos mostraram 51% de infecção pelo CMV em 41 casos de necropsias dos pacientes HIV positivos estudados, sendo a medula mais freqüentemente acometida pela inflamação que o córtex. Estes dados também estão de acordo com o encontrado no nosso estudo, onde observamos 78,6% de acometimento da medula e 57,1% de acometimento do córtex. Em apenas um caso verificamos flebite da veia central da supra-renal, aparentemente em continuidade com a medulite. Este achado embora ainda não descrito em caso de AIDS, é semelhante ao encontrado em chagásicos crônicos12.

Marks9, mostrou em uma série de necropsias que a supra-renal é a glândula endócrina mais freqüentemente acometida na AIDS, e que o CMV é o agente infeccioso mais freqüente, causando desde supra-renalite focal até necrose extensa. Outro achado importante mencionado pela autora é de inflamação da supra-renal sem um agente infeccioso detectado. Este fato tem sido interpretado como evidência de inflamação nesta topografia causada diretamente pelo HIV, pelo conhecido tropismo do vírus pelo tecido nervoso.

As manifestações endócrinas na AIDS estão associadas a vários mecanismos, incluindo efeito direto do retrovírus, infecções oportunistas, neoplasias, alteração na nutrição e os efeitos das drogas usadas no tratamento da doença. Neste último aspecto, sabe-se que o cetoconazol, agente antifúngico, inibe a esteroidogênese. A rifampicina aumenta o risco de insuficiência adrenal por aumentar a atividade do citocromo P-450 e alterar o metabolismo do cortisol. A suramina, agente antiviral, interfere na síntese de glicocorticóides e leva a processo degenerativo no córtex da supra-renal. O uso da vidarabina exacerba a hiponatremia do paciente, assim como o ganciclovir inibe a esteroidogênese e a pentamidina leva a hipoglicemia9.

Desses dados da literatura, podemos inferir que o efeito das drogas se associa ao próprio quadro anátomo-clínico da doença, podendo levar a alterações na supra-renal por ação direta. Entre estas alterações, a calcificação por nós encontrada talvez se encaixe dentro deste mecanismo patogenético. Outra possível causa de calcificação na glândula é a pneumocistose disseminada10, evento não encontrado no nosso caso.

Contribui também para a insuficiência supra-renal, os processos anatomopatológicos causados por agentes oportunistas, sendo que independentemente da região geográfica, o CMV é o agente mais encontrado. A supra-renalite por CMV é caracterizada pela inclusão intranuclear e intracitoplasmática patognomônicas desta infecção. Ela afeta preferencialmente a camada medular, levando a necrose coagulativa. O grau de necrose da supra-renal correlaciona-se com o grau de envolvimento pelo CMV5.

Vários investigadores relatam uma relação in vitro entre o Herpes simplex (HSV), o CMV e a replicação do HIV. As primeiras proteínas reguladoras do HSV e do CMV parecem induzir a ativação de longa repetição terminal do HIV e o aumento da transcrição, resultando no aumento da produção de RNA viral. Especula-se que a resposta imune contra o HSV ou o CMV induziria maior produção de citocinas que potencializariam um aumento na replicação do HIV11.

Em infecções generalizadas não há tendência ao acometimento da supra-renal. Entretanto, uma vez estabelecida, a lesão nesta glândula se torna maior do que as lesões extra supra-renais, especialmente quando se trata da infecção por HSV, CMV e Herpes zoster 4.

Em nosso estudo encontramos 42,8% dos casos de inflamação, sem a evidência do agente infeccioso. Este processo inflamatório pode ser devido ao efeito citopático direto do HIV sobre a glândula, ou talvez seria por ação de outro agente infeccioso não detectável pelas colorações utilizadas no presente estudo. Outra hipótese para explicar as alterações degenerativo-inflamatórias das supra-renais, seria devido ao emprego de drogas para o tratamento dos agentes infecciosos ou mesmo da própria AIDS9.

Além disso, Groll e cols6, estudando a hipófise e a supra-renal de 130 necropsias descreveram anormalidades em 76% destas. As lesões predominantes foram inflamação e infiltração por sarcoma de Kaposi ou linfoma não-Hodgkin. O achado mais comum foi supra-renalite necrosante por CMV, em 52% dos casos. Em um terço destes, levou a intensa destruição envolvendo mais de 50% do parênquima. A destruição quase total das supra-renais, em alguns casos, sugerem que a supra-renalite por CMV pode apresentar curso destrutivo progressivo.

O estado terminal dos pacientes com AIDS freqüentemente é marcado por hipotensão, hiponatremia e hipovolemia, sugerindo o comprometimento da supra-renal. Este comprometimento pode ser caracterizado por alterações necrótico-degenerativas, acompanhadas por inflamação na glândula. Tais processos devem-se em parte aos agentes infecciosos freqüentemente encontrados, ao próprio HIV ou mesmo devido às drogas usadas no tratamento destes pacientes.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Vandair Gonçalves, Maria Prado de Morais e Aloísio Costa, pelos serviços técnicos prestados.

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Recebido para publicação em 21/08/97.