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CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO EPIDEMIOLÓGICO DA PARACOCCIDIOIDOMICOSE: ESTUDO EM ÁREA DE CULTURA DE CAFÉ

Mario León Silva-Vergara

DOI: 10.1590/S0037-86821997000100019


O presente estudo foi realizado no distrito de Tobati, Ibiá, MG, visando avaliar diversos aspectos relacionados à paracoccidioidomicose e seu agente etiológico, Paracoccidioides brasiliensis, para o qual, ainda não se conhece o habitat natural e o ciclo biológico.

A hipótese inicial sobre o cultivo de café ser possivelmente um dos locais onde exista transmissão do fungo, em condições naturais, baseou-se em alguns relatos da literatura e observações relacionadas com atividades de doentes em outros centros hospitalares.

O primeiro isolamento de Paracoccidioides brasiliensis foi realizado na Venezuela, a partir de solo de plantação de café. Artificialmente, cultivou-se este fungo em folhas de café, em São Paulo. Os países que apresentam a maior incidência da doença, têm tido notável tradição cafeeira e, no Brasil, os estados do sul e sudeste se destacam nessa tradição. Recentemente, houve relato de paracoccidioidomicose entre os índios da tribo Surui na Amazônia, os quais mudaram seus hábitos, passando a cultivar café, a partir da década de 80.

Partindo-se dessas premissas, foram selecionadas três fazendas cafeeiras, neste Distrito. Mensalmente, foram realizadas visitas à esta área e coletadas, aleatoriamente, em sacos plásticos, diferentes amostras como: terra colhida da superfície, embaixo do pé de cafeeiro, folhas e frutos do arbusto menos expostos ao sol, palha residual do beneficiamento do produto e terra colhida na entrada das tocas de tatu (Dasypus novemcinctus). Sobre este mamífero, suspeita-se que possa ser um reservatório de Paracoccidioides brasiliensis na natureza e a sua distribuição geográfica coincide, notavelmente, com aquela da paracoccidioidomicose.

Todas as amostras foram processadas, um dia após a coleta, seguindo os procedimentos descritos classicamente para o isolamento de fungos na natureza. Uma vez processadas as diferentes amostras, realizou-se semeaduras em meios Mycosel® e Fava Netto, à temperatura ambiente e a 35oC, respectivamente. Com o mesmo material, foram inoculados camundongos pela via intraperitoneal, sendo que em cada animal recebeu, de cada amostra a mesma dose semanal de inóculo, durante 3 semanas. Estes animais foram mantidos em biotério durante 12 semanas, sendo posteriormente submetidos a sacrifício, onde eram retirados assepticamente fígado, baço e pulmão. Fragmentos destas vísceras, foram semeados posteriormente e também incluídos para estudo histopatológico.

Foi realizado inquérito epidemiológico, através de cadastramento da população com ficha que visava inquirir aspectos relacionados com as diversas atividades exercidas pelos habitantes dentro da área rural, principalmente referentes às lavouras de café e ao grau de conhecimento em relação ao tatu Dasypus novemcinctus. Pela informação obtida entre os lavradores, no que se refere ao consumo de carne deste mamífero, foram contactados caçadores da região que guardaram as vísceras de vinte e um animais e com elas, foi realizado estudo histopatológico.

O mapeamento da endemicidade da área, foi realizado utilizando-se antígenos (paracoccidioidina e histoplasmina) padronizados por Fava Netto, os quais são amplamente conhecidos e estudados, não somente no Brasil, como também em outros países da América Latina.

As culturas diretas destes materiais resultaram em intenso e rápido crescimento de fungos saprófitas, inviabilizando o isolamento de Paracoccidioides brasiliensis. Um dos camundongos inoculado com terra mostrou, no momento do sacrifício, presença de múltiplos abscessos, principalmente no fígado e peritônio. Do fígado deste animal, foi isolado em cultura 3 semanas após, fungo dimórfico com característica semelhante a Paracoccidioides brasiliensis. O aspecto da colônia à temperatura ambiente, era algodonoso e composto de filamentos micelianos finos com clamidoconídios. À temperatura de 35oC, as colônias tinham aspecto cerebriforme, cor branco-amarelada e à miscroscopia, observou-se leveduras com dupla parede refringente, brotamentos únicos ou múltiplos e com diâmetros aferidos entre 2 e 28µm.

A patogenicidade da cepa isolada foi avaliada em ratos Wistar, injetados intraperitonealmente, e após 45 dias, verificou-se letalidade de 50% dos animais, onde foram sacrificados os sobreviventes. Observou-se infecção grave e disseminada acometendo praticamente todos os órgãos abdominais e torácicos, e dos fragmentos das vísceras foram realizadas novas culturas que permitiram crescimento de fungo com características semelhantes às do inóculo inicial.

Os cortes histológicos mostraram processo inflamatório granulomatoso intenso, contendo grande quantidade de leveduras, com morfologia idêntica a Paracoccidioides brasiliensis. Paralelamente, foram também inoculadas duas cobaias, por via intratesticular, que mostraram ao cabo de 25 dias, processo inflamatório, caracterizando orquite micótica confirmada, histopatologicamente.

A reatividade antigênica foi testada através de imunodifusão em gel de agarose, frente a soros de pacientes com paracoccidioidomicose, histoplasmose e aspergilose, sendo possível observar linhas de precipitado, apenas entre o antígeno do novo isolado e os soros de pacientes com paracoccidioidomicose. Uma outra imunodifusão, feita com anti-soro obtido de coelhos imunizados com a cepa de Paracoccidioides brasiliensis, frente a antígeno sonicado desta mesma cepa e de outras cepas, confirmou esta identidade antigênica.

Foi realizada eletroforese em gel de poliacrilamida SDS-PAGE, utilizando as exoproteínas obtidas por cultura de leveduras desta cepa em meio líquido. Esta eletroforese foi realizada em paralelo com a cepa BAT, isolada de paciente com a forma aguda da doença. Observou-se a expressão de bandas protéicas comuns às duas cepas; porém débil visualização da banda correspondente à glicoproteína de 43kd (GP43), por parte da cepa isolada da natureza.

Concomitantemente, foi realizado o Western blotting, que permitiu constatar a expressão nítida da banda correspondente a GP43 por parte da cepa isolada do solo.

A avaliação genética da cepa isolada de Paracoccidioides brasiliensis através da reação em cadeia de polimerase (PCR) permitiu verificar a presença do gene que codifica a expressão da GP43 por parte dessa cepa.

Os testes anteriores caracterizam definitivamente este novo isolamento como sendo realmente Paracoccidioides brasiliensis.

O estudo histopatológico das vísceras de 21 tatus, permitiu a visualização no pulmão de apenas um destes mamíferos, de granuloma com estruturas fúngicas semelhantes às de Paracoccidioides brasiliensis.

O inquérito epidemiológico realizado em 194 indivíduos residentes neste distrito, mostrou que 141 (72,7%) tinham nascido e morado neste local e 193 (99,5%) referiram habitar em área rural. Entre estes indivíduos, 108 (55,7%) referiram história de atividades atuais ou anteriores relacionadas com a agricultura. Outras atividades foram referidas com menor freqüência. Em 101 (52%) indivíduos, foi possível estabelecer a relação com participação em alguma atividade vinculada ao cultivo de café, sendo a coleta do grão, a mais freqüentemente referida por 65 (33,5%) dos indivíduos inquiridos.

Com respeito ao tatu, foi possível identificar que 151 (77,8%) indivíduos conheciam este mamífero e 94 (48,5%) identificavam bem os locais e/ou cultivos onde freqüentemente ele é visto. Percentagem similar de indivíduos, soube referir sobre os hábitos alimentares deste animal e 91 (46,9%) relataram história pregressa ou atual de ingestão de carne de tatu.

O inquérito com histoplasmina e paracoccidioidina realizado entre 109 (56%) habitantes, permitiu estabelecer reatividade a estes antígenos, em 48 (44%) e 54 (49,5%) indivíduos, respectivamente.

A correlação epidemiológica entre os indivíduos reatores à paracoccidioidina com antecedente de participação em lavoura de café e com aqueles indivíduos que referiam como atividade principal, aquela de apanhar o grão, mostrou associação estatisticamente significativa.

O isolamento de cepa de Paracoccidioides brasiliensis em cultivo de café, a detecção de infecção natural por este fungo no pulmão de tatu, o inquérito epidemiológico que mostrou população homogênea com alta porcentagem de indivíduos envolvidos com lavoura de café e reatores à paracoccidioidina, permitem catalogar esta região como área endêmica e como “reservárea” de paracoccidioidomicose.

A interrelação dos resultados anteriores mostra que o cultivo de café pode propiciar circunstancialmente a transmissão de Paracoccidioides brasiliensis, especialmente entre os apanhadores do grão. Além disso, é provável que a presença de tatus nestas lavouras fortaleça a hipótese que eles sejam reservatórios do fungo na natureza.

CONTRIBUTION TO THE EPIDEMIOLOGICAL STUDY OF PARACOCCIDIOIDOMICOSIS: A STUDY AT A COFFEE CROPS AREA

The present study was carried out in Tobati, Ibiá, MG, with the aim of evaluating several aspects concerning paracoccidioidomycosis and its etiologic agent, Paracoccidioides brasiliensis, whose natural habitat and life cycle are still unknown.

The initial hypothesis that the coffee fields might be one of the sites where the fungus transmission occurs in nature, was based not only on some reports in the literature, but also on some coincident facts which might have been already observed.

The first isolation of Paracoccidioides brasiliensis was obtained in soil from coffee crops in Venezuela.

This fungus was also cultured artificially in coffee leaves in SP. The countries with a major incidence of this disease have traditionally had renowned coffee crops. The southern states and the southeast of Brazil have a leading position in the activity. It was recently reported cases of paracoccidiodomycosis in the Suriu tribe in the Amazon jungle. These indians changed their customs and started to grow coffee in 1980.

Like the previous researches, three coffee farms were selected in the district. These farms were monthly visited and several different samples were collected in plastic bags. A total of 760 samples ranged from soil underlying the coffee trees, leaves and fruits less exposed to the sunlight, residual straw from coffee processing and soil taken at the entrance of burrows of the armadillo (Dasypus novemcintus). This animal is suspect to be a reservoir of Paracoccidioides brasiliensis in nature, an its geographical distribution notably coincides with the presence of paracoccidiodomycosis. One day after being collected, all samples were processed under the standard procedures required to isolate fungi in nature. Later they were sewn in Mycosel® medium at room temperature and Fava Netto medium at 35oC. Mice were also inoculated intraperitoneally with the same material and each animal received the same weekly dose during three weeks. These animals were kept in the vivarium for 12 weeks and then slaughtered. Their liver, spleen, and lung were removed aseptically. Fragments of these visceras were later sewn and also included in the histopathologic study.

An epidemiological survey as well as a population register were carried out to get information related to the in habitants activities in the rural areas, specially the coffee growing and their level of knowledge of the armadillo, Dasypus novemcintus. The consumption of this animal’s meat was also detected. Hunters in the area kept visceras of 21 animals, which were studied histopathologically.

The endemicity of the area was carried out using antigens (paracoccidioidin and histoplasmin) standarded by Fava Netto which are widely known and studied in Brazil and other Latin American countries as well.

The cultures with these materials revealed such an intense and fast growing of saprophytic fungi that it was impossible to isolate the Paracoccidioides brasiliensis fungus.

One of the mice, inoculated with soil, showed multiple abscesses mainly in the liver and peritoneum at slaughtering time. From its liver a dimorphic fungus was isolated in culture after three weeks. It looked like a Paracoccidioides brasiliensis fungus.

At room temperature the colony showed a cotton-like aspect with thin filaments of mycelium and clamydoconidias. At 35oC the colonies had a brain-like aspect and a yellowish white colour. At microscopy they presented yeasts with a double refringent wall and single or multiple budding forms with a 2-28mm of diameter.

The pathogenicity of the isolated strain was evaluated in mice Wistar injected intraperitoneally. Forty five days later, 50% of mortality occurred and the remaining mice were slayed. A deep and disseminated infection was observed not only in the abdominal cavity but also in the chest. From the fragments of these visceras new cultures were made which permitted the growing of the fungus with similar characteristics of the initial isolate. Histological cuts showed intense granular inflammatory process which contained a great quantity of yeasts with identical morphology of Paracoccidioides brasiliensis. Meantime, two guinea pigs had their testes inoculated and twenty five days they showed inflammatory process, typical of mycotic orchitis diagnosed histologically.

The antigenic reactivity was tested through immunodiffusion in agar-gel in serum of patients with paracoccidiodomycosis, histoplasmosis and aspergillosis. Precipting bands were only observed between the new isolate and the serum of patients with paracoccidioidomycosis. Another immunodiffusion of anti-serum of rabbits immunized with the strain of Paracoccidioides brasiliensisin sonicated antigen of the same strain, confirmed this identity.

Electrophoresis in gel poliacrilamida SDS-PAGE was made by using the exoproteins obtained in cultures of yeasts of this strain in liquid. This electrophoresis occurred at the same time of the one of BAT strain which was isolated from a patient with acute clinical paracoccidioidomycoses form of the disease. Proteic bands were observed in common in the two strains. However, there was weak expression band corresponding to glicoprotein 43kd (GP43) in the strain isolated in nature.

The Western blotting showed clearly the expression of the GP43 and the gen that determin the codification of this protein was identified by polimerase chain reaction (PCR).

The examination of the visceras of 21 armadillos presented a granuloma with fungal structures similar to Paracoccidioides brasiliensisin the lung of one of these mammals.

The epidemiologic survey of 194 local dwellers revealed that 141 (72,7 %) had been born and lived in the area, 193 (99,5 %) were living in rural sites at the time.

Among them 108 (55,7%) reported previous or present farming activities. Other occupations were also reported but not so often.

It was possible to establish the relationship between the participation in any activity linked to the growing of coffee in 101 (52%) of those individuals. Coffee grain collection was mostly referred among 65 (33,5%) of them.

For the armadillo 151 people (77,8%) knew and 98 (48,5%) of them identified its home and/or crop fields where it can be seen.

The same number of people also showed knowledge of the eating habits of this animal and 91 (46,9%) of the local residents reported prior or current consumption of its meat.

The survey about histoplasmin and paracoccidioidin held among 109 (56%) of the inhabitants permitted to establish reactivity to these antigens in 48 (44%) and 54 (49,5%) individuals respectively.

The epidemiological link between the individuals who revealed reaction to paracoccidioidin with prior history of coffee growing activies, and those reporting the grain collection as the main work showed statistically significant association.

The isolation of the Paracoccidioides brasiliensis strain in coffee crops, the detection of the infection through this fungus in the armadillo lung, the epidemiological survey which showed an homogeneous population with a high percentage of individuals involved in coffee growing, and paracoccidioidin reactors appoint this region as an “reserváreas” and endemic area of paracoccidioidomycosis.

The interrelation of the former results reveal that the cultivation of coffee may ease the transmission of Paracoccidioides brasiliensis, specially among the grain collectors. In addition, the presence of armadillo in these crops is likely to enhance the hypothesis that they are a reservoir of this fungus in nature.

Mario León Silva-Vergara

Tese apresentada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Doutor.
Ribeirão Preto, SP, Brasil, 1996.

Recebido para publicação em 21/11/96.