Home » Volumes » Volume 30 January/February 1997 » LESÕES CUTÂNEAS COMO ÚNICAS MANIFESTAÇÕES DE REATIVAÇÃO DA INFECÇÃO PELO TRYPANOSOMA CRUZI EM RECEPTORA DE RIM POR TRANSPLANTE

LESÕES CUTÂNEAS COMO ÚNICAS MANIFESTAÇÕES DE REATIVAÇÃO DA INFECÇÃO PELO TRYPANOSOMA CRUZI EM RECEPTORA DE RIM POR TRANSPLANTE

Instituto Paulista de Doenças Infecciosas e Parasitárias, São Paulo, SP.

DOI: 10.1590/S0037-86821997000100012


Paciente com doença de Chagas, em fase crônica, após ter sido submetida a transplante de rim sofreu reativação da infecção devido ao Trypanosoma cruzi, como conseqüência de imunodepressão medicamentosa. O acontecimento manifestou-se exclusivamente através de lesões cutâneas ulceradas, merecendo portanto divulgação tal aspecto clínico inusitado.
Palavras-chaves: Doença de Chagas. Transplante de rim. Reativação parasitária. Aspecto clínico inusitado.

A doença de Chagas, que tem o Trypanosoma cruzi como agente etiológico, figura entre as mais importantes endemias vigentes no continente americano. Essa infecção parasitária motiva, muitas vezes, expressivos distúrbios orgânicos em seres humanos e, por isso, exige reiterados cuidados sob o ponto de vista médico-assistencial. Ao lado desses percalços, vem crescendo nos últimos anos uma nova preocupação, representada pela reativação da parasitose, em virtude de imunodepressão, relacionada com tratamentos quimioterápicos de neoplasias ou mesenquimopatias, por exemplo, e transplantes de órgãos. Tais causas de déficit imunológico tornaram-se bem mais comuns e, associadas à elevada prevalência da doença de Chagas, fazem prever aumento das conseqüências clínico-patológicas desse binômio, traduzidas por eventos multiformes, que devem ficar satisfatoriamente conhecidos, a fim de permitir rápidas medidas diagnósticas e terapêuticas1 2 3 4 5 6 7 8 9 11 12.

Como tivemos a oportunidade de reconhecer inusitada ocorrência nesse contexto, consideramos oportuno divulgá-la. Trata-se do aparecimento de lesões cutâneas exclusivamente, como expressão da reativação do parasitismo pelo T. cruzi, em paciente acometida de doença de Chagas em fase crônica e receptora de rim por transplante.

RELATO DO CASO

Mulher (MCMM) com 51 anos de idade, branca e brasileira. Em março de 1995, foi receptora de rim de um irmão, por meio de transplante, em virtude de insuficiência renal crônica decorrente de nefropatia diabética com subseqüente nefrectomia pela existência de tumor renal neoplásico. Ela sofria de diabetes melito e, em fevereiro do ano citado, as provas sorológicas de hemaglutinação passiva, de imunofluorescência indireta e imunenzimática, para o diagnóstico da doença de Chagas, resultaram negativas, não tendo revelado anticorpos IgG ou IgM anti-T. cruzi.

Houve evolução sem contratempos até 48 dias após o transplante, tendo lugar imunodepressão através de azatioprina, ciclosporina e prednisona. Nessa ocasião, surgiram nódulos nos membros inferiores, que depois de dois meses eram cinco, dolorosos, hiperemiados e com tamanhos de 3 ou 4cm (Figura 1). Em dois, estavam presentes ulcerações profundas e nessa evolução não houve febre, estando o exame físico normal, se excluídos os distúrbios cutâneos descritos.

Para elucidar a natureza das lesões, providenciamos biópsia de uma delas e respectivo exame histopatológico. Este evidenciou intenso componente inflamatório no derma, constituído por linfócitos, plasmócitos e numerosos macrófagos; além disso, verificou-se disposição difusa em torno de vasos, com extensão ocasional à parede deles. Foram vistas formas amastigotas livres no interstício ou no citoplasma de macrófagos, mediante coloração pelos métodos de Giemsa e da hematoxilina-eosina. Complementarmente, processo imuno-histoquímico, executado com anticorpo policlonal específico, obtido no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, demonstrou por imunomarcação formas amastigotas do T. cruzi aparentes como material particulado livre ou no citoplasma dos macrófagos; a propósito, sucedeu utilização do método da estreptavidina-biotina, sendo de 1/10.000 o título.

Avaliação radiológica da área cardíaca e eletrocardiograma não evidenciaram alterações. A pesquisa do T. cruzi no sangue periférico, a fresco, e mais precisamente no “creme” leucocitário, não detectou o protozoário, tendo o mesmo sucedido quando empregado o “quantitative buffy coat analysis tubes-QBC”. Hemocultura em meio apropriado e xenodiagnóstico, praticado com 40 ninfas de quarto estádio do Triatoma infestans, não demonstraram o parasita.

Era provavelmente da forma indeterminada a doença de Chagas na fase crônica, mas não podemos afirmar isso com segurança por não ter sido realizada análise radiológica do esôfago e do cólon.

Terapêutica anti-T. cruzi foi levada a cabo por intermédio do benznidazol. A posologia correspondeu a 10mg/kg/dia e perdurou durante 51 dias. Houve necessidade de interromper o emprego porquanto adveio neuropatia. Contudo, na lesão cutânea ulcerada (Figura 1), processou-se clara melhoria, evidenciada pela evolução no sentido de cicatrização, se bem que não completa. Na época da elaboração deste texto, a doente encontrava-se sob atenta observação médico-assistencial.

DISCUSSÃO

A paciente, com doença de Chagas, na fase crônica, como conseqüência de imunodepressão medicamentosa que faz parte do transplante de rim, sofreu reativação da infecção pelo T. cruzi, manifestada de maneira sem dúvida inusitada. O desenvolvimento de lesões cutâneas ulceradas não é tido até o momento como alteração alertadora ou sugestiva e, ainda mais, deu-se sem outras manifestações concomitantes, de acordo com a avaliação clínica e os procedimentos subsidiários realizados. Inclusive, as tentativas destinadas a demonstrar a presença do parasita no sangue periférico resultaram infrutíferas.

Por ocasião de transplante de coração, aconteceu fato congênere ao que estamos descrevendo. O diagnóstico concernente ao receptor igualmente decorreu de biópsia e correspondente análise histopatológica10.

Os nefrologistas solicitaram, na etapa pré-transplante, as provas sorológicas aptas a diagnosticar a protozoose devido ao fato da doente ter residido em área rural do Estado de Goiás. Não obstante, não valorizaram a possível participação da doença de Chagas e isso é até certo ponto compreensível, porquanto as anormalidades situadas nas pernas não são conhecidas e vinculadas à enfermidade parasitária. Antes de nossa intervenção, que teve acima de tudo o mérito de providenciar análise histopatológica bem conduzida, colegas enveredaram pelos diagnósticos de angiomatose bacilar e infecção por Serratia marcescens, tendo realizado terapêuticas mal sucedidas.

Um grupo de médicos que dispõem de convicentes casuísticas no que tange ao tratamento específico da infecção pelo T. cruzi, recentemente, sugeriu que o receptor de órgão por transplante, quando acometido de doença de Chagas, receba 5mg/kg/dia de benznidazol, no decurso de 60 dias. Todavia, a validade dessa medida dependerá de pesquisas suficientes.

O tratamento efetuado por meio de benznidazol mostrou-se benéfico. Ocorreu nítida involução das lesões e quando a administração foi interrompida, em virtude de efeito adverso expresivo, ou seja, neuropatia situada nos membros inferiores, estava havendo plena cicatrização. Observação clínica em curso servirá para controle evolutivo e, convém frisar, o nifurtimox, que é o único antiparasitário utilizável como alternativa, também pode promover o mesmo tipo de distúrbio colateral. De qualquer forma, o período segundo o qual foi tomado o benznidazol é praticamente o preconizado por profissionais experientes.

Diante da falta de subsídios consistentes, decidimos não aprofundar especulações referentes às eventuais influências de cepas e do diabetes.

Cremos que esse relato de caso suscita basicamente os seguintes comentários: a) é conveniente considerar sistematicamente a possibilidade de enfermo que vai ser imunodeprimido estar comprometido pela doença de Chagas, levando em conta informes epidemiológicos ou outros indicativos; b) impõe-se lembrar que a reativação da infecção pelo T. cruzi tem-se apresentado de maneiras variadas sob os pontos de vista clínico e laboratorial, parecendo que elas ainda não se encontram bem conhecidas; c) vale salientar que tratamento específico afigura-se valioso em determinados eventos e que, convenhamos, é desejável contar com melhores medicamentos antiparasitários; d) terapêutica prévia à imunodepressão talvez seja útil, podendo merecer emprego conforme a conduta indicada, que requer contudo avaliações adequadas.

SUMMARY

We report a patient with chronic asymptomatic Chagas’ disease that presented Trypanosoma cruzi reactivation after kidney transplantation and immune depression. The only clinical manifestation of the disease was ulcerative skin lesions, wich is unusual in Chagas’ disease.
Key-words: Chagas’ disease. Kidney transplantation and Chagas’ disease. Trypanosoma cruzi reactivation. Unusual presentation of Chagas’ disease.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

1. Aulet F, Riarte A, Pattin M, Segura EL, Vasquez M. Chagas disease and kidney transplantation. Transplantation Proceedings 23:2653, 1991.         [ Links ]

2. Chocair PR, Amato Neto V, Sabbaga E, Torrecilas PH. Aspectos clínico-diagnósticos relativos à fase aguda da doença de Chagas, em pacientes submetidos a transplante de rim e imunodeprimidos. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 18:43-45, 1985.         [ Links ]

3. Chocair PR, Sabbaga E, Amato Neto V, Shiroma M, Góes GM. Transplante de rim: nova modalidade de transmissão da doença de Chagas. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 23:280-282, 1981.

4. Faria JBL, Alves G. Transmission of Chagas’ disease through cadaveric renal transplantation. Transplantation 56:1583-1584, 1993.        [ Links ]

5. Ferraz AS, Figueiredo JFC. Transmission of Chagas’ disease through transplanted kidney: occurrence of the acute form of the disease in two recipients from the same donor. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 35:461-463, 1993.        [ Links ]

6. Leiguarda R, Roncoroni A, Taratuto AL, Jost L, Berthier M, Nogues M, Freilij H. Acute CNS infection by Trypanosoma cruzi(Chagas’ disease) in immunosuppressed patients. Neurology 40:850-851, 1990.         [ Links ]

7. Libow LF, Beltrani VP, Silvers DN, Grossman ME. Post-cardiac transplant reactivation of Chagas’ disease diagnosed by skin biopsy. Cutis 48:39-40, 1991.         [ Links ]

8. Lopez Blanco OA, Cavalli NH, Jasovich A, Gotlieb D, González-Cappa S. Chagas’ disease and kidney transplantation- Follow-up of nine patients for 11 years. Transplantation Proceedings 24:3089-3090, 1992.         [ Links ]

9. Luders C, Caetano MA, lanhez JA, Fonseca JA, Sabbaga E. Renal transplantation in patients with Chagas’ disease: a long-term follow-up. Transplantation Proceedings 24:1878-1879, 1992.         [ Links ]

10. Stolf NAG, Higuchi L, Bocchi E, Bellotti G, Auler JOC, Uip D, Amato Neto V, Pileggi F, Jatene AD. Heart transplantation in patients with Chagas’ disease cardiomyopathy. The Journal of Heart Transplantation 6:9307-9312, 1987.         [ Links ]

11. Vásquez MC, Riarte A, Pattin M, Campanini A. Evolution of chagasic kidney transplant patients. Transplantation Proceedings 25:3263-3264, 1993.         [ Links ]

12. Vásquez MC, Riarte A, Pattin M, Lauricella M. Chagas’ disease can be transmitted through kidney transplantation. Transplantation Proceedings 25:3259-3260, 1993.         [ Links ]

Instituto Paulista de Doenças Infecciosas e Parasitárias, São Paulo, SP.
Endereço para correspondência: Drª Juliane Gomes de Paula Amato. Al. Gabriel Monteiro da Silva 429, 01441-000 São Paulo, SP.
Fax: (011) 881-8158.

Recebido para publicação em 15/03/96.