Home » Volumes » Volume 30 September/Octuber 1997 » TRANSPLANTE CARDÍACO NO TRATAMENTO DA MIOCARDIOPATIA CHAGÁSICA

TRANSPLANTE CARDÍACO NO TRATAMENTO DA MIOCARDIOPATIA CHAGÁSICA

DOI: 10.1590/S0037-86821997000500017


A doença de Chagas, de alta prevalência na América Latina, é causada pelo Trypanosoma cruzi. Este, por ação direta e através de outros mecanismos imunológicos de auto-agressão, causa lesão cardíaca grave, de comportamento crônico e progressivo, configurando, na sua fase final, a chamada miocardiopatia chagásica crônica, com comprometimento funcional grave, e prognóstico ruim, merecendo assim, eventual consideração terapêutica para transplante cardíaco.

Porém, o papel do transplante cardíaco para tratamento da cardiopatia chagásica não está bem definido. Em uma experiência inicial com um pequeno número de chagásicos submetidos a transplante cardíaco, observou-se alta incidência de reativação da infecção pelo Trypanosoma cruzi e aumento na incidência de neoplasias, com resultados inferiores aos obtidos com este procedimento em pacientes não chagásicos.

O objetivo deste estudo foi analisar os resultados do transplante cardíaco em pacientes chagásicos com doses menores de imunossupressores, comparando-os com um grupo de pacientes não chagásicos com dose convencional de imunossupresores, avaliando-se as incidências de reativação, infecção, rejeição, função do enxerto e sobrevida nos dois grupos. No período de fevereiro de 1993 a junho de 1995, 15 pacientes chagásicos (grupo I) e 18 não chagásicos (grupo II) foram submetidos a transplante cardíaco ortotópico para tratamento de insuficiência cardíaca e arritmia ventricular grave.

A idade média dos pacientes chagásicos foi de 37,3 ± 9,11 anos, e a dos não chagásicos foi de 49,7 ± 10 anos. Em ambos os grupos, a maioria dos pacientes se encontrava em classe funcional IV (NYHA). A fração de ejeção média pela ventriculografia radioisotópica no pré-operatório foi semelhante nos dois grupos (15,8 ± 5,0 no grupo I e 16,1 ± 4,3 no grupo II). Outras características clínicas e laboratoriais do pré-operatório, como tempo de sintomas, uso de drogas vasoativas, arritmia ventricular, sódio sérico e funções renal e hepática, não foram diferentes nos dois grupos.

Os parâmetros hemodinâmicos (IC, PCP, RVP), também foram semelhantes nos dois grupos. O esquema de imunossupressão para os pacientes chagásicos, foi elaborado com doses menores de ciclosporina nos primeiros meses, retirada de prednisona no terceiro mês de pós-operatório e doses habituais de azatioprina. Para os pacientes não chagásicos, foi mantido o esquema clássico de imunossupressão. A rejeição foi monitorizada através de biópsia endomiocárdica. O diagnóstico de reativação da infecção pelo Trypanosoma cruzi foi realizado através da demonstração do parasita em material de biópsia ou isolamento em xenodiagnóstico e hemoculturas. No período de pós-operatório predominaram as complicações infecciosas e a rejeição, com incidências semelhantes nos pacientes chagásicos e não chagásicos. Não observamos distúrbios de ritmo grave, disfunção significativa do ventrículo direito e insuficiência renal em nenhum paciente dos dois grupos. A rejeição teve ocorrência freqüente nos primeiros meses após o transplante e com incidência decrescente na evolução. A necessidade de biópsia foi semelhante nos dois grupos, e o número de episódios de rejeição, por paciente, não foi diferente nos dois grupos (0,86/paciente nos chagásicos e 1,16/paciente nos não chagásicos). As infecções mais prevalentes foram as virais (46,4%), bacteriana (39,2%) e por protozoário P. carinii (14,2%). A incidência de infecção viral foi semelhante nos dois grupos (0,46 episódio/paciente nos chagásicos e 0,33 episódios/paciente nos não chagásicos e apresentaram pouca morbidade. A infecção bacteriana teve ocorrência semelhante nos dois grupos (0,33 episódios/paciente nos chagásicos e 0,55 episódios/paciente nos não chagásicos, sendo responsável por três óbitos (um no grupo I e 2 no grupo II). A reativação da infecção pelo Trypanosoma cruzi foi demonstrada em três pacientes; todos foram tratados com allopurinol e nenhum apresentou recidiva na evolução; 80% dos pacientes chagásicos estão livres de reativação nos primeiros dois anos de acompanhamento. A mortalidade foi semelhante nos dois grupos (20% para os chagásicos e 22% para os não chagásicos) e nenhum dos óbitos esteve relacionado à etiologia chagásica. A curva atuarial de sobrevida foi de 80% em dois anos para ambos os grupos, semelhante à observada na literatura. Na evolução tardia, todos os pacientes se encontravam em classe funcional I e com a função de enxerto preservada na avaliação pelo ecocardiograma (FE = 72,3%/chagásicos e 71,7%/não chagásicos).

Concluímos que os pacientes chagásicos submetidos a transplante cardíaco, usando este esquema de imunossupressão, têm a mesma evolução e sobrevida dos pacientes não chagásicos, com baixa incidência de reativação da infecção pelo Trypanosoma cruzi, com função do enxerto preservada e sem risco adicional de desenvolver neoplasias.

CARDIAC TRANSPLANTATION FOR THE TREATMENT OF CHAGAS’ CARDIOMYOPATHY

Chagas’ disease, an illness of high prevalence in Latin America, is caused by Trypanosoma cruzi. This pathogen acts directly upon the heart tissue and through other mechanisms of autoimmune origin causing severe cardiac damage of chronic and progressive nature. The ultimate phase of the disease is called chronic Chagas’ cardiomyopathy, a stage in which the cardiac function is seriously affected and has a poor prognosis, thus deserving eventual therapeutic consideration of heart transplantation.

However, the role of cardiac transplantation for the treatment of Chagas’ cardiomyopathy is not well established. In an initial experience with a small number of patients with Chagas’ disease that had heart transplantation it was observed a high incidence of reactivation of the Trypanosoma cruzi infection and an increase in the incidence of neoplasms, with poorer outcome compared to patients without Chagas’ disease treated with this procedure.

The purpose of the present study was to analyse the results of cardiac transplantation in patients with Chagas’ disease that were treated with lower doses of immunosuppressors compared to a group of patients without Chagas’ disease using the conventional doses of immunosuppressors, in order to evaluate the incidence of reactivation, infection, rejection, graft function, and survival in both groups.

From February 1993 to June 1995, fifteen patients with Chagas’ disease (group I) and eighteen patients without Chagas’ disease (group II) underwent orthotopic heart transplantation for the treatment of cardiac failure and serious ventricular arrythmia.

The average age for the patients with Chagas’ disease was 37.3 ± 9.11 years and 49.7 ± 10 years for the patients without Chagas’ disease. Most of the patients in both groups were in functional class IV (NYHA). The mean value for the ejection fraction obtained by radioisotopic ventriculography in the preoperative period was similar in both groups (15.8 ± 8 in group I and 16.1 ± 4.3 in group II). Other clinical and laboratorial preoperative characteristics like duration of symptoms, administration of vasoactive drugs, ventricular arrythmias, plasma sodium, renal and hepatic function were not different in the two groups. The hemodynamic parameters (cardiac index, pulmonary capillary pressure, pulmonary vascular resistance) were also similar in both groups.

The immunosuppression plan for patients with Chagas’ disease was elaborated with lower doses of cyclosporin in the first months, withdrawal of prednisone in the third post-operative month, and habitual doses of azathioprine. The classic medical plan for immunosuppression was maintained for the patients without Chagas’ disease.

The rejection reaction was monitored through endomyocardial biopsy. The diagnosis of reactivation of the Trypanosoma cruziinfection was done by demonstration of the parasite in biopsy material or isolation of the pathogen from blood cultures or by xenodiagnosis.

Complications such as infection and rejection predominated in the postoperative period and the incidence was similar in the patients with and without Chagas’ disease. Serious rhythm disturbances, important right ventricular dysfunction, and renal failure were not observed in neither group of patients. The rejection reaction was a frequent complication in the first months after transplantation and the follow-up showed a decrease in its incidence. The need for biopsy was similar in both groups and the number of rejection episodes per patient was not different in the two groups (0.86/patient in group I and 1.16/patient in group II). The most prevalent infections were of viral origin (46.4%), followed by the bacterial ones (39.2%) and the protozoan P. carinnii (14.2%). The incidence of viral infection was similar in both groups (0.46 episode/patient in group I and 0.33 episode/patient in group II) and showed a low morbidity.

The occurrence of bacterial infection was similar in the two groups (0.33 episode/patient in group I and 0.55 episode/patient in group II) and was the cause of three deaths (one in group I and two in group II). The reactivation of the infection by Trypanosoma cruzi was demonstrated in three patients. They were all treated with allopurinol, none of them had a relapse during their evolution and 80% of the patients with Chagas’ disease are free from reactivation in the first two years of follow-up.

The mortality was similar in both groups (20% for group I and 22% for group II) and the deaths were not related to the Chagas’ etiology. The survival actuarial curve is 80% in two years for both groups, similar to the one observed in literature.

In the late follow-up period, all patients are in functional class I and with a preserved graft function evaluated by the echocardiogram (ejection fraction = 72.3% in group I and 71.7% in group II).

It is concluded that the patients with Chagas’ disease who underwent cardiac transplantation using the immunosuppression plan herein disclosed had the same evolution and survival as the ones without Chagas’ disease, with a low incidence of reactivation of the infection by Trypanosoma cruzi, and a preserved graft function.

Dirceu Rodrigues de Almeida

Tese apresentada à Escola Paulista de Medicina da
Universidade Federal de São Paulo para
obtenção do Título de Doutor.
São Paulo, SP, Brasil, 1996.

Recebido para publicação em 09/05/97.