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TRATAMENTO DA FORMA MUCOSA DE LEISHMANIOSE SEM RESPOSTA A GLUCANTIME, COM ANFOTERICINA B LIPOSOMAL

Raimunda Nonata Ribeiro Sampaio e Phillip Davis Marsden

Laboratório de Dermatomicologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

DOI: 10.1590/S0037-86821997000200007


Tratamos com ambisome (2 a 5g totais de dose) seis pacientes com leishmaniose mucosa sem resposta a tratamento com glucantime (20mg SbV/kg/dia). A dose diária usada foi 2 a 3mg/kg/dia, aplicada por um mínimo de 20 dias. Após 26 a 38 meses de acompanhamento, cinco pacientes estão clinicamente curados. Um recidivou aos 6 meses. Não foram observados efeitos colaterais além de cefaléia, após a injeção. O ambisome constitue uma opção terapêutica para os pacientes com leishmaniose mucosa sem resposta aos antimoniais.
Palavras-chaves: Leishmaniose mucosa. Leishmania (Viannia) braziliensis. Anfotericina B liposomal.

A forma mucosa da LTA em nosso país é geralmente causada pela Leishmania (Viannia) braziliensisL(V)b. Esta cepa se caracteriza por alta agressividade aos tecidos cutâneos mucosos, escassez e difícil isolamento dos parasitos nos tecidos e resistência ao tratamento por antimoniais, podendo ocorrer, freqüentes recidivas da doença. Cinco por cento dos pacientes com lesões mucosas evoluem para morte, por complicações12.

As drogas usadas na segunda linha de tratamento são tóxicas, de baixa tolerância e podem apresentar resistência14 16 17. A anfotericina B liposomal (ABL) foi usada com sucesso no calazar resistente a tratamento3 20 e também na leishmaniose dérmica pós-calazar no Sudão7.

Nosso objetivo foi testar a tolerância e eficácia da ABL (ambisome) em pacientes com forma mucosa de leishmaniose sem resposta ao antimonial pentavalente (glucantime).

MATERIAL E MÉTODOS

Tratamos seis pacientes com forma mucosa de leishmaniose, que variavam de leves a graves e que não responderam a tratamento prévio com antimonial pentavalente (20mg SbV/kg/dia) e cujas faixas etárias variaram de 15 a 30 anos. Excluímos grávidas e pacientes com doenças hepáticas, cardíacas e renais.

O ambisome foi aplicado na dose de 2mg/Kg/dia diluído em 5% de dextrose, na veia durante 30-60 minutos diariamente, por um período médio de 22 dias. Cada frasco contém 50mg de anfotericina B liposomal e todos foram mantidos em refrigerador à temperatura de 2o a 8oC. Antes do uso, foram aquecidos em banho-maria durante 10 minutos a 65oC e agitados vigorosamente para dispersar o conteúdo.

Todos pacientes foram submetidos aos seguintes exames:pesquisa de amastigotas por esfregaço realizado por aposição em lâmina corada pelo método de Giemsa, cultura para leishmânia em meio bifásico de ágar sangue (NNN), inoculação em hamster, biópsia para exame histopatológico, intradermorreação de Montenegro (IRM), pesquisa direta de anticorpos por imunofluorescência (IFA).

Estes procedimentos foram realizados antes e ao fim do tratamento em todos os pacientes. A IFA foi realizada também a cada seis meses após o tratamento. Os pacientes foram submetidos regularmente, aos exames parasitológicos citados, após tratamento.

Os pacientes foram tratados internados e submetidos a rotina normal de exames e além destes, foram observados especificamente as provas de função renal (uréia, creatinina e clearence de creatinina), provas de função hepática (transaminase glutâmico oxalacética, transaminase glutâmico pirúvica e fosfatase alcalina), dosagem de potássio, cálcio, colesterol, glicose, fundo de olho, campimetria e avaliação eletrocardiográfica. Estes exames foram realizados antes, durante e ao fim do tratamento.

RESULTADOS

Todos pacientes tiveram IRM positiva e a IFA com títulos que variaram de 1:20 a 1:60. Dois tiveram a inoculação em hamster positiva. Todas biópsias analisadas apresentaram infiltrado inflamatório linfoplasmohistiocitário, compatível com leishmaniose tegumentar. Em um caso, a cultura foi positiva e o parasito identificado por anticorpos monoclonais, como Leishmania (Viannia) braziliensis.

Cinco pacientes foram considerados curados, com regressão dos sintomas e das lesões cutâneo-mucosas em um período de acompanhamento de 26 a 38 meses (Figuras 1 e 2). Um paciente melhorou durante o uso de ambisome e retornou aos 6 meses após o tratamento, com considerável aumento das lesões cutâneo-mucosas (Tabela 1) e, nesta ocasião, os exames parasitológicos e imunológicos apresentaram crescimento de lesão no hamster e títulos de IFA inalterados.

Todos pacientes foram acometidos, durante o tratamento, de cefaléia de intensidade e duração variáveis, mas tolerável. Não houve alterações da campimetria ocular, nem cárdio-nefro-hepato-toxicidade.

DISCUSSÃO

Na década de 80, tratamos um grupo de pacientes com forma mucosa de leishmaniose, com antimonial pentavalente (glucantime) na forma seriada e obtivemos 54% de cura após um ano de acompanhamento15. Acreditamos que com o decorrer dos anos este percentual seria bem mais baixo.

Na década de 90, com o uso de antimonial pentavalente em esquemas contínuos, ou sem interrupção, estes índices passaram a variar de 63 a 75%5 8.

Este fato demonstra a necessidade de aprofundar os estudos com as drogas de segunda linha e pesquisar novas drogas na leishmaniose.

Temos como segunda linha, a anfotericina B convencional e alguns estudos têm sido realizados com o uso de antimonial pentavalente associado a alopurinol, aminosidina e pentamidina2 13 16.

A anfotericina B clássica é efetiva na forma mucosa de leishmaniose, mas muito tóxica e também passível de recidiva17. Seu uso é limitado por suas reações adversas, incluindo anafilaxia, trombocitopenia, dor generalizada, convulsões, calafrio, febre, flebite, anemia, anorexia, diminuição da função tubular renal e hipocalcemia em um terço dos pacientes1.

A vantagem do uso da anfotericina B associada a liposoma fundamenta-se no fato dos liposomas serem fagocitados pelos macrófagos, sítio da infecção intracelular, interagindo diretamente com o ergosterol do parasita e reagindo menos com o colesterol da célula do hospedeiro, aumentando assim a eficácia da droga e sua tolerabilidade10 11.

A ABL foi usada com êxito no tratamento do calazar4, na coinfecção desta doença com o vírus da Imunodeficiência humana19 e também nas formas de calazar resistentes a antimonial pentavalente3 20.

Neste relato original, apresentamos os resultados do uso de ABL em seis pacientes com forma mucosa de leishmaniose que não responderam a glucantime, cinco estão clinicamente curados e um melhorou, tendo piorado posteriormente. Este paciente já não havia respondido a uma dose adequada de antimonial, não respondeu satisfatoriamente a ambisome, e posteriormente submetido a tratamento com aminosidina (gabbromicina) também melhorou, para depois voltar a agravar as lesões, estando hoje com recidiva após ser submetido a tratamento com pentamidina. Isto nos leva a difícil abordagem da resistência dos parasitos causadores da leishmaniose às drogas, em que parece pesar duas questões, como foi demonstrado por Grogl6: resistência do parasita e questões relativas a resposta do hospedeiro. Em relação ao nosso doente, temos uma forte tendência a aceitar que possivelmente se tratasse de resposta do hospedeiro, levando em consideração a falta de resposta às várias drogas citadas.

A dose total da ABL variou com a gravidade da forma clínica, tendo sido as formas mais graves tratadas com doses mais elevadas. O período de acompanhamento dos doentes, após tratamento, variou de 2 a 3 anos. Nos exames parasitológicos e IFA realizados após tratamento, apenas o paciente em que houve falha terapêutica apresentou pesquisa de amastigota positiva no hamster inoculado, após tratamento e os títulos de IFA desse paciente permaneceram inalterados.

Todos pacientes, apresentaram cefaléia em intensidade variável e não houve nenhum sinal de cárdio-nefro-hepato-toxicidade, resultados estes semelhantes a outros obtidos em tratamentos do adulto19 20. Efeito adverso grave, como reação anafilática ocorrida em adulto, é citado na literatura9.

Em conclusão a ABL (ambisome) foi usada com segurança e boa eficácia no tratamento da forma mucosa de leishmaniose, causada por Leishmania (V) braziliensis. A cepa de um dos pacientes foi identificada e 80% de nossa casuística hospitalar corresponde a essa espécie.

O estudo deveria se estender a maior número de pacientes com lesão mucosa, visando estabelecer dose diária e total mínima eficaz. São necessários estudos comparativos desta droga com outras já existentes. Convém comentar, entretanto, que a droga é de difícil manejo e muito cara (R$ 250,00 a ampola).

SUMMARY

We treated six patients with mucosal leishmaniasis who failed to respond to glucantime (20mg/kg/day) with ambisome (2-5 grams total dose). The daily dose was 2-3mg/kg/day given for a minimum of 20 days. After 26-38 months of follow up, five patients were clinically cured. One relapsed after six months. No side effects of therapy were observed apart from headache after injection. Ambisome is a therapeutic option for patients with mucosal leishmaniasis unresponsive to antimonials.
Key-words: Mucosal leishmaniasis. Leishmania (Viannia) braziliensis. Amphotericin B liposome.

AGRADECIMENTOS

Aos estudantes Alberto Luiz Behr da Rocha, André Luiz Lopes Sampaio, Luciana Villas Boas e Márcia Schramm, que ajudaram na coleta destes dados e também a acompanhar estes pacientes, após o tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Laboratório de Dermatomicologia do Departamento de Clínica Médica da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.
Apoio Financeiro: Organização Mundial de Saúde, Projeto nº 910722 e CNPq, Projeto nº 401477/92-4.
Endereço para correspondência: Profª Raimunda Nonata Ribeiro Sampaio. Deptº de Clínica Médica/FCS/UnB, Campus Universitário, Asa Norte, 70910-900 Brasília, DF, Brasil.
Recebido para publicação em 26/03/96.