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Envenenamento fatal por baiacu (Tetrodontidae): relato de um caso em criança

Pedro de Lima Santana NetoI; Elisabeth Cristina Moreira de AquinoII; José Afrânio da SilvaII; Maria Lucineide Porto AmorimII; Américo Ernesto de Oliveira JúniorII; Vidal Haddad JúniorIII

IDepartamento de Zoologia, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, PE IICentro de Assistência Toxicológica, Hospital da Restauração. Recife, PE IIIFaculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, SP e Hospital Vital Brazil, Instituto Butantan, São Paulo, SP

DOI: 10.1590/S0037-86822010000100020


RESUMO

É descrito um envenenamento pela ingestão de vísceras de um baiacu-pintado (Sphoeroides testudineus) por uma criança de dois anos, que apresentou sudorese fria, fraqueza muscular progressiva, parada cardiorrespiratória e morte. São discutidos os riscos do consumo da carne e vísceras de baiacus, fato comum em certas regiões do Brasil.

Palavras-chaves: Tetraodontidae. Sphoeroides. Baiacu. Brasil.


ABSTRACT

A case of poisoning resulting from ingestion of viscera from a spotted puffer fish (Sphoeroides testudineus) by a two-year-old child is described. The child presented cold sweating, progressive muscle weakness, cardiorespiratory arrest and death. The risks of consuming the meat and viscera of puffer fish, which is a common occurrence in certain regions of Brazil, are discussed.

Key-words: Tetraodontidae. Sphoeroides. Puffer fish. Brazil.


 

 

INTRODUÇÃO

Os baiacus ou peixes-bola são peixes venenosos das famílias Tetraodontidae e Diodontidae, comuns na costa brasileira. São muito fáceis de identificar devido ao comportamento de aumentarem o volume corporal através da ingestão de ar ou água. Tal comportamento se justifica pelo fato do diâmetro do peixe aumentar e os predadores não poderem engoli-lo. Os baiacus mais importantes no Brasil são os baiacus-araras ou baiacus-lisos (Lagocephalus sp) e os baiacus-pintados (Sphoeroides sp). O primeiro gênero atinge até dois quilogramas de peso, mas os baiacus-pintados são menores chegando a pesar até um quilograma. A carne destes peixes tem bom sabor e é apreciada em determinadas regiões do Brasil (V Haddad Jr: comunicação pessoal, 2009). Os gêneros acima pertencem à família Tetrodontidae e outros baiacus, que tem espículas recobrindo o corpo, são classificados na família Diodontidae.

A tetrodotoxina (TTx) é a principal neurotoxina encontrada nos baiacus e pode ser isolada em maiores concentrações nas vísceras (especialmente gônadas, fígado e baço) e na pele do peixe1. O peixe não produz as toxinas, apenas as armazena em alguns órgãos corporais, usando-a como defesa contra predadores2. Outros animais terrestres e aquáticos também podem armazenar TTx, como alguns moluscos, salamandras, peixes e rãs das florestas tropicais (família Dendrobatidae)1,2.

A TTx é uma toxina termo-estável, que não sofre ação pela cocção, lavagem ou congelamento. Seu nível é sazonal, e as maiores concentrações são encontradas nas fêmeas em época reprodutiva. Atua bloqueando os receptores de sódio voltagem-dependentes, impedindo a despolarização e a propagação do potencial de ação nas células nervosas. Esta ação ocorre nos nervos periféricos motores, sensoriais e autonômicos, tendo ainda ação depressora no centro respiratório e vasomotor do tronco encefálico1,2,3.

As manifestações neurológicas surgem em algumas horas e cursam com parestesias periorais (sugestivas do acidente) e nas extremidades, fraqueza muscular, mialgias, vertigens, disartria, ataxia, dificuldade de marcha, distúrbios visuais e outros sintomas. Com o agravamento das manifestações neurológicas, surgem convulsões, dispnéia e parada cardiorrespiratória, que pode ocorrer nas primeiras 24 horas2. A sintomatologia gastrointestinal é caracterizada por náuseas, vômitos, dores abdominais e diarréia2,4. A morte pode ocorrer devido à paralisia muscular, depressão respiratória e falência circulatória. Há relato de óbito humano por bradicardia não responsiva a qualquer tratamento (bloqueio atrioventricular completo)2.

O envenenamento provocado pela ingestão de baiacus é uma das mais graves formas de intoxicação por animais aquáticos e o veneno (tetrodoxina) normalmente está em maior concentração no fígado, baço, vesícula biliar, nas gônadas e na pele, podendo provocar a morte em poucos minutos, após o consumo5.

Em um estudo com Sphoeroides spengleri, espécie de baiacu presente em toda a costa do Brasil, foi possível demonstrar que os níveis de tetrodotoxina nos músculos, pele e vísceras de peixes do gênero Sphoeroides são elevados e constituem risco para os consumidores enquanto os níveis em baiacus do gênero Lagocephalus são menores e em teoria apresentam menor grau de risco5,6.

Não existem dados concretos sobre este tipo de envenenamento no Brasil, embora existam relatos esparsos de óbitos e casos graves registrados2. Assim, não é possível se ter uma real dimensão do problema no Brasil1,5. Por outro lado, no Japão é bastante comum o consumo do peixe. Os mesmos (pertencentes ao gênero Fugu) são preparados por cozinheiros especializados que procuram retirar o veneno, podendo deixar resquícios deste em quantidade suficiente para provocar parestesias periorais e labiais7. Apesar dos cuidados e dos rituais, cerca de 50 acidentes fatais ocorrem todo ano no Japão2,3.

Não há tratamento específico para os envenenamentos causados pela ingestão de baiacus. O tratamento é de suporte, fundamentalmente de apoio respiratório. Podem ser indicadas como medidas imediatas a lavagem gástrica e eméticos, mas apenas nas primeiras horas após a ingestão4,5. Esta comunicação relata um acidente fatal em uma criança pelo consumo de vísceras de um baiacu-pintado.

 

RELATO DO CASO

JS, um ano e 11 meses de idade, masculino, foi admitido no Hospital de Goiana-PE, com história de ingestão das vísceras de baiacu, cerca de duas horas antes do atendimento, com início dos sintomas de intoxicação, aproximadamente, uma hora após a refeição.

Os familiares afirmaram que alguns baiacus foram pescados na noite anterior do acidente, em uma região estuarina localizada no distrito de São Lourenço, município de Goiana, Estado de Pernambuco, Brasil. A avó do menino limpou os peixes, aproximadamente às 08h30min da manhã, retirando a pele e as vísceras, que foram lavadas em água corrente e banhadas com suco de limão. Apenas as vísceras foram preparadas, sendo fritas em óleo quente e posteriormente, misturadas com batata doce. A criança ingeriu a preparação aproximadamente às 10 horas e 30 minutos da manhã e segundo os familiares aproximadamente 1 hora após a refeição apresentou suor frio, mal estar, formigamento e o corpinho mole (sic). Esta foi então encaminhada pelos familiares à unidade de saúde mais próxima, dando entrada na unidade duas horas após a ingestão das vísceras, apresentando sialorréia intensa, cianose e já em parada cardiorrespiratória (PCR). Foram instituídas manobras de ressuscitação, sem êxito.

 

DISCUSSÃO

Os baiacus são utilizados como fonte de alimento de maneira rotineira na área do acidente, como acontece em certas regiões do Nordeste. O peixe preparado pela família foi um espécime do gênero Sphoeroides (Sphoeroides testudineus) (Figura 1) – exemplares estão depositados na Coleção Ictiológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Coleção Científica do Centro de Assistência Toxicológica do Estado de Pernambuco (CEATOX-PE) – e, para maior risco, as partes do peixe consumidas pela criança foram as vísceras, sabidamente capazes de conter maior concentração de TTx do que a musculatura (Figura 2). As medidas utilizadas na limpeza não são eficazes na neutralização da toxina3. Oliveira cols6 apontaram um maior risco de envenenamento após consumo de peixes do gênero Sphoeroides, o que foi confirmado por este relato de caso. Como fator importante para a discussão, deve-se enfatizar ainda a alta frequência do consumo de baiacus na região e a total ausência de informações sobre a possibilidade de intoxicação por parte dos pescadores e suas famílias, uma contradição com a experiência adquirida pela população local ao longo dos anos. Um agravante causado pela situação socioeconômica da população local é que os filés (que em potencial tem menor concentração de toxina, embora ainda sejam capazes de envenenar) são vendidos por preços razoáveis pelos pescadores, restando aos próprios e suas famílias subprodutos dos peixes, como as vísceras, onde as concentrações de TTx são maiores. (PL Santana Neto: comunicação pessoal, 2009).

 

 

 

 

A vítima de intoxicação por Ttx pode apresentar graves manifestações neurológicas, que podem evoluir para parada respiratória e morte. Quando tratado em tempo hábil, e de forma correta, as complicações graves podem ser evitadas por suporte ventilatório. A população (especialmente pescadores e suas famílias) utiliza os peixes para alimentação em várias áreas do Brasil, sendo carente de informações e dos riscos que a atitude provoca2.

 

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Drª Cleide Ribeiro do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco, à Srª Vilma Gomes e a todos os Enfermeiros do Centro de Assistência Toxicológica de Pernambuco, pela contribuição na realização deste trabalho.

 

REFERÊNCIAS

1. Haddad Jr V. Animais aquáticos de importância médica no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2003; 36:591-597.         [ Links ]

2. Haddad Jr V, Takehara ET, Rodrigues DS, Lastória, JC. Envenenamento por baiacus (peixes-bola): revisão sobre o tema. Diagn e Tratame 2004; 9:183-185.         [ Links ]

3. Haddad Jr V. Animais Aquáticos Potencialmente Perigosos do Brasil: guia médico e biológico. Editora Roca, São Paulo, 2008.         [ Links ]

4. Fundação Nacional da Saúde. Ictismo. In: Ministério da Saúde, Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos, 2ª edição Brasília, 2001. p. 81-85.         [ Links ]

5. Neto FU, Sillos MD. Doenças veiculadas por alimentos – intoxicação alimentar. The eletronic journal of pedratric gastroenterology, nutrition and liver diseases. 2004. Disponível em <http://www.e-gastroped.com.br/sept04/intoxica.htm>. Acesso em 23 jul, 2009.         [ Links ]

6. Oliveira JS, Pires Junior OR, Morales RAV, Bloch Jr C, Schwartz, CA, Freitas JC. Toxicity of puffer fish-two species (Lagocephalus laevigatus, Linaeus 1766 and Sphoeroides spengleri, Bloch 1785) from the Southeastern Brazilian Coast. J Ven Anim Toxins 2003; 9:76-88.         [ Links ]

7. Garcia RWD. Representações sociais da comida no meio urbano: algumas considerações para o estudo dos aspectos simbólicos da alimentação. Rev Cad de Debate 1994; 2:12-40.         [ Links ]

 

 

 Endereço para correspondência:
Dr. Pedro de Lima Santana Neto.
Depto de Zoologia/UFPE.
Avenida Morais Rego s/n
50570-420 Recife, PE.
Tel: 55 81 2126-8353
e-mail: biologyscorpion@gmail.com

Recebido para publicação em 05/08/2009
Aceito em 07/01/2010