João Marcos Barbosa-FerreiraI; Abraão Ferreira NobreI; Jaime Giovany Arnez MaldonadoI; José Borges-PereiraII; Patrícia Lago ZauzaII; José Rodrigues CouraII
IHospital Universitário Francisca Mendes, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM IILaboratório de Doenças Parasitárias, Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ
RESUMO
É relatado episódio de acidente vascular encefálico isquêmico em paciente chagásico crônico autóctone da Amazônia. Este é o primeiro caso documentado da forma predominantemente tromboembólica da cardiopatia chagásica crônica na região.
Palavras-chaves: Doença de Chagas. Amazônia. Acidente vascular encefálico.
ABSTRACT
An episode of stroke in a chronic autochthonous chagasic patient from the Brazilian Amazon is reported. This is the first documented case of a predominantly thromboembolic form of chronic Chagasic cardiopathy in the region.
Keywords: Chagas disease. Amazon region. Stroke.
INTRODUÇÃO
Tem sido observado aumento do número de casos de doença de Chagas (DC) aguda e crônica na região amazônica brasileira. Acredita-se que a DC apresente menor morbidade nesta região, embora já tenham sido descritos alguns poucos casos autóctones de cardiopatia chagásica crônica (CCC)1.
A cardiopatia chagásica crônica apresenta-se clinicamente sob a forma de três síndromes fundamentais: insuficiência cardíaca (IC), arritmias e tromboembolismo2. Na Amazônia, já foram descritos casos autóctones de CCC manifestando-se clinicamente por IC3 e por síndrome arritmogênica4.
O presente relato descreve o primeiro caso da forma predominantemente tromboembólica em paciente com CCC autóctone da Amazônia.
RELATO DE CASO
Trata-se de paciente de 48 anos, masculino, motorista de ônibus, natural do Município de Cruzeiro do Sul, Mesorregião do Vale do Juruá, interior do Estado do Acre. Viveu até os 23 anos de idade na área urbana de Cruzeiro do Sul, porém trabalhava como agricultor na área rural. Há 25 anos mudou-se para Manaus, Estado do Amazonas, onde reside desde então. Nunca viajou para fora da região amazônica, nem recebeu transfusão de sangue ou transplante de órgãos. Em julho/2009, apresentou quadro de lipotímia seguido de hemiparesia direita e disfasia. Foi atendido em serviço de urgência na rede pública de saúde do estado, onde foi feito diagnóstico de acidente vascular encefálico isquêmico (AVEi). Foi iniciado tratamento clínico e fisioterápico. Cinco dias após, apresentou melhora da disfasia, e, após sessenta dias, constatou-se reversão completa da hemiparesia. Noventa dias após o evento, procurou atendimento em Serviço de Cardiologia, referindo quadro de lipotímia. Na admissão, ele encontrava-se lúcido, orientado no tempo e espaço, sem evidências de déficit motor. O exame do aparelho cardiovascular evidenciou ritmo cardíaco irregular e ausência de sopros. A frequência cardíaca era de 60bpm e a pressão arterial de 120/80mmHg.
Ao eletrocardiograma, apresentava bloqueio átrioventricular de segundo grau do tipo 2:1 e extrassistolia ventricular frequente. Ao ecocardiograma transtorácico, foi identificado aumento discreto das câmaras esquerdas, aneurisma apical e disfunção sistólica ventricular esquerda leve, com fração de ejeção de 50% (Figura 1). A tomografia computadorizada de crânio evidenciou área de encefalomalácia no lobo frontal esquerdo e infarto lacunar na coroa radiada esquerda, sinais sugestivos de sequela de AVEi (Figura 2). Foi realizado ainda cateterismo cardíaco, que não evidenciou obstruções coronarianas. Ao estudo eletrofisiológico, não houve indução de taquiarritmias.
O paciente foi submetido a implante de marcapasso definitivo, de dupla câmara, evoluindo de forma satisfatória pós procedimento. Durante à internação, coletou-se sangue venoso para diagnósticos sorológico e parasitológico para infecção pelo Trypanosoma cruzi, sendo os exames realizados no Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz, na Cidade do Rio de Janeiro. Pesquisou-se IgG anti-T. cruzi utilizando-se testes de imunofluorescência indireta (IFI), com antígenos parasitários em lâminas e ensaio imunoenzimático (ELISA) com antígenos recombinantes. Os exames sorológicos foram positivos, sendo IFI = 1/80 para cut off = 1/40 e ELISA com densidade óptica = 0,704 para cut off = 0,345. Para diagnóstico parasitológico, utilizou-se a reação em cadeia da polimerase (PCR) para detecção de k-DNA de Trypanosoma cruzi, empregando-se os primers 5′-AAATAATGTACGGG(T/G)GAGATGCATGA-3′ e 5′-GGTTGCATTGGGTTGGTGTAATATA-3′, que amplificam o fragmento de 330 pares de bases contendo as regiões hipervariáveis dos minicírculos do DNA do cinetoplasto (k-DNA) do parasita, a qual apresentou-se negativa. Ao receber alta, o paciente encontrava-se assintomático, em bom estado geral e sem sequelas motoras, sendo encaminhado para acompanhamento ambulatorial, com orientação para uso permanente de anticoagulação oral com varfarina.
DISCUSSÃO
Apesar de os estudos clínico-epidemiológicos, até o momento, indicarem menor morbidade da doença de Chagas na Amazônia, em comparação com áreas endêmicas das Regiões Nordeste e Sudeste do Brasil5, alguns casos graves de CCC já foram descritos em pacientes autóctones da região. Foram relatados casos de cardiomiopatia dilatada de etiologia chagásica com quadro clínico de IC com alterações eletro e ecocardiográficas típicas de DC3,6,7, assim como um caso da forma arritmogênica da CCC, com diagnóstico de morte súbita abortada e necessidade de implante de cardiodesfibrilador4.
Sabe-se que a CCC possui três apresentações clínicas principais: IC, arritmias cardíacas e tromboembolismo sistêmico ou pulmonar. Na Amazônia, ainda não há relato da forma predominantemente tromboembólica da CCC, o que pode induzir a subestimação da importância da DC como causa de acidente vascular encefálico na região.
A associação entre DC e eventos cerebrovasculares vem sendo descrita há muito tempo e tem sido explicada por mecanismos envolvendo atividade inflamatória e lesão endotelial. Em estudo recente, tipo caso-controle, concluiu-se que a DC é fator de risco independente para AVEi8.
Estudo ecocardiográfico visando verificar a possível associação entre DC e AVEi demonstrou que o AVEi associa-se a disfunção sistólica ventricular esquerda de grau discreto, trombos intracardíacos e aneurisma apical9. O maior risco de AVEi em pacientes chagásicos mesmo em idades mais precoces e com disfunção ventricular esquerda apenas discreta, muitas vezes sem quadro clínico de insuficiência cardíaca, alerta para a necessidade de se adotarem estratégias de prevenção mais rigorosas para os pacientes com DC. Esse fato é especialmente importante em regiões como a Amazônia, onde a DC muitas vezes não é lembrada como causa de cardiopatia e o acesso ao sistema de saúde habitualmente é mais difícil.
Em 2008, Sousa e cols descreveram modelo composto por quatro variáveis (aneurisma apical, idade, disfunção ventricular e alteração eletrocardiográfica) que, transformado em escore de pontos, estratificava os pacientes chagásicos com maior risco de AVEi. Esses pacientes podem ser tratados com estratégias de anticoagulação, que não seriam indicadas de acordo com as normas vigentes para cardiopatias de outras etiologias. Dessa forma, o AVEi, que muitas vezes apresenta desfecho fatal ou sequelas permanentes, poderia ser evitado de forma mais eficaz. De acordo com o escore proposto, o paciente descrito apresentava três pontos, pontuação que indicaria uso de varfarina ou ácido acetilssalicílico10.
Os resultados dos exames para diagnóstico da doença de Chagas neste caso estão de acordo com aqueles obtidos em estudos realizados em populações de chagásicos crônicos da região amazônica, nos quais observou-se pequena taxa de positividade da PCR provavelmente expressando baixa parasitemia e níveis reduzidos de IgG anti-T. cruzi, em decorrência de baixa imunogenicidade do Tripanosoma cruzi circulante na região1.
Em suma, o presente caso mostra que a DC deve ser considerada fator determinante de cardiopatia na região amazônica, a qual pode se manifestar sob a forma de tromboembolismo. Esse relato de caso autóctone da Amazônia alerta para a probabilidade de ocorrência de AVEi de etiologia chagásica na região e para a necessidade de se adotarem estratégias rigorosas de prevenção desses eventos.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência:
Dr. João Marcos Barbosa-Ferreira
HUFM/UFAM
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Recebido para publicação em 03/05/2010
Aceito em 13/07/2010