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Eritema nodoso como forma de reativação da doença de Chagas em transplantado cardíaco

Solange Corrêa Garcia Pires d'ÁvilaI; Antônio Miguel Morena Pires d'ÁvilaII; Carla PagliariIII; Verônica M. GonçalvesI; Maria Irma Seixas DuarteIII

IDepartamento de Patologia e Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP IIDireção Regional de Saúde de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP IIIDepartamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP

DOI: 10.1590/S0037-86822005000100013


RESUMO

O presente caso ilustra uma forma de eritema nodoso, cujo agente foi o Trypanosoma cruzi em paciente chagásica submetida a transplante cardíaco. O diagnóstico foi firmado através do exame histopatológico de biópsia da lesão cutânea e estudo imunohistoquímico. O tratamento com nifurtimox promoveu regressão total das lesões.

Palavras-chaves: Doença de Chagas. Transplante de coração. Eritema nodoso. Reativação parasitária.


ABSTRACT

We report a patient with Chagas’ disease that presented Trypanosoma cruzi reactivation after cardiac transplantation and immunodepression, characterized by skin lesions of erythema nodosum. This is an unusual presentation of Chagas’ disease.

Key-words: Chagas’ disease. Cardiac transplantation. Erythema nodosum. Trypanosoma cruzireactivation.


 

 

A doença de Chagas causada pelo Trypanosoma cruzi é uma importante doença endêmica, desde há muito reconhecida como um problema de saúde pública. Estima-se que um total de 15 milhões de pessoas estejam infectadas nas Américas, geralmente indivíduos pobres, da zona rural e residentes em moradias precárias. Várias espécies de insetos reduvídeos hematófagos tornam-se infectados quando se alimentam de sangue de animais ou de seres humanos infectados. A transmissão para um segundo hospedeiro, vertebrado, acontece quando o orifício da picada cutânea ou uma mucosa são contaminados por fezes infectadas do inseto ou através de infecção congênita6. Os indivíduos infectados mesmo com parasitemia mínima podem transmitir o T. cruziatravés de transfusão de sangue. Nas últimas décadas, tem sido observado que estados de imunodepressão, como os vistos na síndrome de imunodeficiência adquirida, nos transplantes de órgãos seguidos de terapia imunossupressora e nos tratamentos com corticoesteróides e quimioterápicos, podem causar reativação da infecção crônica pelo T. cruzi1 5 7 8 9 10 11.

O presente caso ilustra o aparecimento de lesões exclusivamente cutâneas com características clínicas de eritema nodoso como expressão da reativação do parasitismo pelo T. cruzi, em paciente chagásica em fase crônica e receptora de coração por transplante.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 40 anos, natural do Estado da Bahia e procedente de Palmeira do Oeste, SP. É portadora de cardiopatia chagásica há 10 anos e evoluiu com insuficiência cardíaca grau IV. Foi submetida a transplante cardíaco há 9 meses, quando também iniciou tratamento com drogas imunodepressoras. A mesma relata que há 3 meses, notou aparecimento nas pernas, de nódulos eritematosos dolorosos, medindo entre 3 e 4 cm ( Figura 1). Um hemograma desta época revelou os seguintes valores: eritrócitos 3,68 milhões/mm3, hematócrito 33%, hemoglobina 11,1g/dl e leucócitos 5.200mm3. Observou-se presença de neutrofilia relativa (75%) e de linfopenia relativa (12%). Não encontramos no prontuário médico dados referentes a febre, realização de eletrocardiograma e Raio X de tórax nesta época. Não há também dados referentes à sorologia do doador do coração.

 

 

A paciente foi avaliada pela Clínica Dermatológica, que fez o diagnóstico clínico de eritema nodoso. Foi realizada biópsia da lesão através de punch de 0,4cm e solicitado estudo anatomopatológico. A histopatologia revelou dermatite superficial e profunda associada a paniculite septal, caracterizada por denso infiltrado inflamatório misto, constituído por linfócitos, macrófagos, plasmócitos e polimorfonucleares, permeando as fibras colágenas e circunscrevendo vasos na derme e estendendo-se pelos septos fibrosos do tecido adiposo subcutâneo. Foram observadas abundantes formas amastigotas de T. cruzi localizadas no citoplasma de macrófagos e livres no interstício (Figura 2). O exame imunohistoquímico da biópsia, realizado no Laboratório da Disciplina de Moléstias Transmissíveis do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP, através da técnica de avidina-biotina-peroxidase, utilizando-se anticorpo policlonal específico e desenvolvido em coelho, demonstrou formas amastigotas do T. cruzi livres no interstício e no interior de macrófagos (Figura 3).

 

 

 

 

Tratamento anti-T. cruzi foi iniciado uma semana após o diagnóstico histopatológico, utilizando-se nifurtimox na dosagem de 10mg/kg/dia, durante 60 dias. Observou-se regressão total das lesões cutâneas no retorno da paciente 40 dias após o início da medicação.

 

DISCUSSÃO

Paciente chagásica, submetida a transplante cardíaco e terapêutica imunodepressora, exibiu reativação da infecção pelo T. cruzi, manifestada exclusivamente por lesões cutâneas nodulares, eritematosas, dispostas simetricamente em ambas as pernas, com características clínicas de eritema nodoso. Encontramos relatos na literatura de casos de reativação de doença de Chagas em pacientes transplantados cardíacos, cuja manifestação clínica foi o aparecimento de lesões cutâneas caracterizadas por nódulos eritematosos ulcerados e cujo aspecto histopatológico da inflamação estendeu-se ao tecido celular subcutâneo. Porém, não encontramos relatos de associação da reativação da doença de Chagas com Eritema nodoso, que é uma forma distinta de paniculite septal. Esta entidade é um tipo comum de paniculite das pernas e é considerada uma reação de hipersensibilidade subcutânea a vários agentes etiológicos tais como: infecções fúngicas, bacterianas, uso de drogas, sarcoidose, síndrome de Behçet e doenças inflamatórias do intestino4. Em aproximadamente 1/3 dos pacientes, o fator desencadeante não é identificado. Com esse relato a reativação da doença de Chagas em pacientes imunocomprometidos deve ser incluída como mais uma das causas de eritema nodoso. Curiosamente, em muitos casos de reativação da doença de Chagas, o parasita não tem sido encontrado no sangue periférico, e o diagnóstico da reativação tem sido feito através do achado do parasita em exame histopatológico da pele1 5 9. Ressaltamos aqui a importância da caracterização morfológica do T. cruzi (tamanho, forma e presença de cinetoplasto), bem como a necessidade da realização de colorações especiais e exame imunohistoquímico, visando o diagnóstico diferencial com outros microorganismos com forma e tamanho semelhantes ao T. cruzi tais como: Leishmania sp, Leishmania donovani, Toxoplasma gondi e Histoplasma capsulatum3. Uma vez realizado o diagnóstico, o tratamento tripanossomicida tem se mostrado bastante eficaz1 8 11. Acreditamos que a importância do relato deste caso é chamar a atenção para a possibilidade de reativação de doenças crônicas em indivíduos imunodeprimidos, bem como a necessidade de um exame físico detalhado da pele e estudo anatomopatológico das lesões cutâneas dos mesmos. Tais procedimentos não são de risco, podem ser realizados ambulatorialmente, são de baixo custo operacional e permitem o diagnóstico preciso em 48 horas, possibilitando, assim, um tratamento específico e eficaz para o paciente.

 

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 Endereço para correspondência
Profª Solange Corrêa Garcia Pires d’Ávila
R. Siqueira Campos 1590, Bairro Boa Vista
15025-055 São José do Rio Preto, SP

Recebido para publicação em 04/05/04
Aceito em 4/8/2004