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Óbito em caso de leishmaniose cutâneomucosa após o uso de antimonial pentavalente

Márcio Campos OliveiraI, II; Rivadávio Fernandes Batista de AmorimI; Roseana de Almeida FreitasI; Antonio de Lisboa Lopes CostaI

IDisciplina de Patologia Oral da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN IIFaculdade de Odontologia da Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, BA

DOI: 10.1590/S0037-86822005000300011


RESUMO

Os autores relatam um caso de leishmaniose cutâneomucosa em um paciente de 45 anos que foi tratado com antimonial pentavalente por 30 dias, sem haver remissão da lesão. Dez dias após essa fase do tratamento e antes de iniciar uma nova série terapêutica com a mesma droga, o paciente foi acometido por uma parada cardíaca súbita que o levou a óbito.

Palavras-chaves: Leishmaniose tegumentar americana. Leishmaniose cutâneomucosa. Antimonial pentavalente.


ABSTRACT

The authors report a case of mucocutaneous leishmaniasis in a 45-year-old patient who was unsuccessfully treated with pentavalent antimonial for 30 days. After 10 days from the initial treatment and before starting a new therapeutic regimen with the same drug the patient died due to sudden cardiac arrest.

Key-words: American tegumentary leishmaniasis. Mucocutaneous leishmaniasis. Pentavalent antimonials.


 

 

No Brasil, a leishmaniose tegumentar americana (LTA) é causada principalmente pela Leishmania (Viannia) braziliensis1 3. São três as expressões clínicas dessa doença, as formas cutânea, visceral e mucocutânea5. Cerca de 90% dos casos de leishmaniose mucocutânea ocorrem na Bolívia, Brasil e Peru11. Quando a leishmaniose é ocasionada pela Leishmania (Vianniabraziliensis pode ocorrer acometimento de mucosas. Boca, nariz, laringe e faringe são as áreas mais comumente afetadas1 2 11 14. Na cavidade oral, as lesões exibem aspecto úlcero-vegetante, com granulações grosseiras na superfície. A localização mais comum é o palato, quando a lesão pode apresentar sulcos intercruzados, dividindo-o em quadrantes. Disfonia, disfasia e sialorréia podem ser observadas11.

Os antimoniais pentavalentes são as drogas de escolha para o tratamento da leishmaniose, sendo eficazes em 80% dos pacientes. Apresentam problemas como toxicidade (nefrotoxicidade, cardiotoxicidade e hepatotoxicidade), porém, arritmias fatais ou mortes súbitas são raras1 2 6. Tratamento inadequado ou por tempo prolongado tem uma relação altamente significativa com a ocorrência de doença mucosa. Isso reforça a necessidade de terapia antimonial máxima em pacientes de risco, reduzindo consideravelmente a possibilidade de recorrências após o tratamento. No entanto, alguns pacientes não respondem bem a essa droga, mesmo após uso prolongado e altas doses, onde a anfotericina B passa a ser então a droga de eleição4 8 9. O objeto do presente relato é mostrar um paciente com leishmaniose cutâneomucosa (LCM), que teve morte súbita após tratamento com antimonial pentavalente.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 45 anos, melanoderma, apresentou-se ao Centro de Referência em Lesões Orais do Curso de Odontologia da Universidade Estadual de Feira de Santana, com queixa de um ferimento no nariz e no palato que não cicatrizavam. Ao exame físico extra-oral, verificou-se a presença de uma úlcera rasa de aproximadamente 3cm em seu maior diâmetro, exibindo fundo granuloso, formato arredondado e bordas endurecidas, em volta da asa direita do nariz, parcialmente destruída. Nariz com destruição parcial do septo nasal e a aparência de bico de papagaio (Figura 1). Disfonia, dislalia, tosse e sialorréia foram notadas. O exame físico intra-oral evidenciou extensa lesão úlcero-papilomatosa, com granulações grosseiras na superfície acometendo quase todo o palato (Figura 2). Na anamnese, o paciente relatou que já tinha apresentado uma outra lesão de pele também na região nasal semelhante a atual, mas que cicatrizou logo após o tratamento há cerca de 3 anos, cuja droga referiu não se lembrar, além de não relatar nenhuma outra doença pré-existente. A hipótese diagnóstica inicial foi leishmaniose cutâneomucosa. A reação intradérmica de Montenegro estava positiva.O paciente foi encaminhado à Cidade de Feira de Santana-BA, para que fosse instituído o tratamento adequado. Tomou antimoniato de n-metil glucamina (Glucantime®), na dose de 20mg SbV/kg/dia durante 30 dias. Como não houve remissão completa do quadro, a terapia seria repetida 10 dias depois. Mas, 40 dias após o início do tratamento, o paciente foi acometido por parada cardíaca fatal.

 

 

 

 

DISCUSSÃO

As manifestações clínicas do paciente citado são similares às clássicas descrições feitas pelos autores para a leishmaniose cutâneomucosa2 11 13 14. E este foi o diagnóstico clínico, reforçado pela intradermorreação de Montenegro positiva. Gontijo e cols3 afirmaram que a reação intradérmica de Montenegro, associada com a identificação de aspectos clínicos das lesões, continua a ser o método mais usado para o diagnóstico de LCM em áreas onde recursos de diagnóstico laboratorial são escassos ou inexistentes. Aventou-se também, ainda que remotamente, as hipóteses diagnósticas de paracoccidioidomicose ou neoplasia, uma vez que constituem diagnósticos diferenciais para a leishmaniose cutâneomucosa4. Mas, a associação da história clínica, aspectos clínicos e positividade para a intradermorreação de Montenegro reforçaram o diagnóstico de leishmaniose cutâneomucosa.

Ainda não existe uma terapia ideal para a leishmaniose, mas quando se deseja uma ótima efetividade, a melhor opção terapêutica são os antimoniais intravenosos ou intramusculares4. Os percentuais de cura na forma cutâneomucosa podem se elevar quando se usa esquemas terapêuticos ininterruptos15. Entretanto, alguns pacientes não respondem aos antimoniais, mesmo com doses altas e períodos prolongados de tratamento e outros pacientes não exibem cicatrização das lesões após o uso de várias medicações2. Tratamentos inadequados condicionam maior risco de desenvolvimento de lesões mucosas6. No caso aqui descrito, o responsável pelo tratamento decidiu instituir como terapia o antimonial pentavalente (Glucantime®), na dose de 20mg Sbv/kg/dia durante 30 dias e como não houve remissão da lesão, a terapêutica seria repetida após 10 dias. Outras drogas têm sido empregadas para o tratamento de leishmaniose e dentre elas pode-se destacar a anfotericina B, cetoconazol, itraconazol, dopsona, alopurinol, pentamidina, mefloquina e sulfato de aminosidine2 3 6 11 14 15, muitas dessas ainda com resultados clínicos inconsistentes.

Os antimoniais pentavalentes, apesar de sua comprovada eficácia, apresentam problemas como efeitos colaterais, longa duração da terapia, efetividade diminuída em alguns casos e administração parenteral4 6 7. Os primeiros problemas descritos parecem ser os mais sérios, onde destacam-se principalmente a cardiotoxicidade, a nefrotoxicidade e a hepatotoxicidade, além de fadiga, dores pelo corpo, elevação dos níveis de aminotransferase, pancreatite, artralgia, mialgia, anorexia, náusea, vômitos e cefaléia1 4 7 11 15.

Arritmias fatais ou morte súbita, apesar de raras, podem acontecer, principalmente em terapias prolongadas e com altas doses de antimoniais2 7 10 12. Têm sido observadas alterações eletrocardiográficas induzidas por pequenas doses que se manifestam por alterações na repolarização ventricular. Em função disso, Ribeiro e cols12 preconizam o emprego do monitoramento eletrocardiográfico de rotina mesmo em pacientes tratados por curtos períodos de tempo e pequenas doses. Há uma considerável dificuldade no tratamento de pacientes com LCM e portadores de cardiopatias e nefropatias, devido à falta de opções terapêuticas com baixa toxicidade2. No caso clínico ora relatado, ou o paciente omitiu que era portador de uma cardiopatia, ou o mesmo desconhecia ser portador de tal patologia. No intervalo entre as séries de tratamento com o antimonial pentavalente, o paciente sofreu morte súbita, provavelmente, em decorrência de alteração cardiológica.

 

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 Endereço para correspondência
Prof. Antonio de Lisboa Lopes Costa
Disciplina de Patologia Oral/FO/UFRN
Av. Senador Salgado Filho 1787, Lagoa Nova
59056-000 Natal, RN
Tel: 55 84 215- 4108; Fax: 55 84 215- 4138
e-mail: antoniodelisboa@uol.com.br

Recebido para publicação em: 17/11/2003
Aceito em: 5/3/2005