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Distribuição espacial de populações de triatomíneos (Hemiptera: Reduviidae) em palmeiras da espécie Mauritia flexuosa no Distrito Federal, Brasil

Rodrigo Gurgel-GonçalvesI; Marco Antônio DuarteI; Eduardo Dias RamalhoI; Alexandre Ramlo Torre PalmaII; Christine Agueda RomañaIII,IV; César Augusto Cuba-CubaI

ILaboratório de Parasitologia Médica e Biologia de Vetores da Área de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, Brasília DF, Brasil IIUniversidade Católica de Brasília, Brasília DF, Brasil IIICentro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, Brasília DF, Brasil IVUR016, Institut de Recherches pour le Développement, França

DOI: 10.1590/S0037-86822004000300010


RESUMO

Para determinar e analisar a distribuição espacial de populações silvestres de triatomíneos no Distrito Federal, Brasil, foram amostradas 150 palmeiras da espécie Mauritia flexuosa em seis veredas de diferentes paisagens (silvestre, rural e periurbana) na estação chuvosa. Os triatomíneos foram identificados morfologicamente, separados por sexo e estadio ninfal e examinados para verificar infecção por Trypanosoma cruzi e Trypanosoma rangeli. Vinte e oito (18,6%) palmeiras estavam infestadas por Rhodnius neglectus e 14 (9,5%) por Psammolestes tertius. A freqüência dessas espécies em palmeiras com e sem ninhos foi significativamente diferente, sendo superior nas palmeiras com ninhos de aves e mamíferos na copa. O maior número médio de insetos/palmeira foi observado nas áreas rurais, com estimativas de até 838 insetos/hectare. A composição etária das espécies apresentou um padrão diferente, Rhodnius neglectus com predomínio de ninfas e Psammolestes tertius com predomínio de adultos, sendo que muitos ovos de Rhodnius neglectus foram coletados indicando um evento reprodutivo em fevereiro de 2003. Entre os ninhos encontrados nas palmeiras, o do pássaro Phacellodomus ruber(Furnariidae) apresentou as maiores abundâncias de triatomíneos, ocorrendo em 42% das palmeiras. A abundância relativa de Rhodnius neglectus e Psammolestes tertius foi maior em áreas rurais que possuíram maior número de ninhos nas palmeiras e menor densidade de palmeiras por hectare. Nenhum dos 96 triatomíneos examinados estava infectado por Trypanosoma cruzi ou Trypanosoma rangeli, apesar de encontrarmos infecção de Rhodnius neglectus por esses parasitas em estudos anteriores.

Palavras-chaves: Rhodnius neglectus. Psammolestes tertius. Mauritia flexuosa. Distrito Federal. Brasil.


ABSTRACT

To determine and analyze the distribution of Triatominae sylvatic populations in the Federal District of Brazil, 150 Mauritia flexuosa palm trees were sampled in six veredas of different landscapes (sylvatic, rural and peri-urban) in the rainy season. Triatomines were morphologically identified and grouped by sex and nymphal stage and were examined to verify infection by Trypanosoma cruzi and Trypanosoma rangeli. Twenty eight (18.6%) palm trees were infested by Rhodnius neglectus and fourteen (9.5%) by Psammolestes tertius. The frequency of Triatominae in palm trees with and without nests was significantly different being higher in palm trees with bird and mammal nests in the crown. The higher average number of insects/palm tree was observed in rural areas with estimates of up to 838 insects/hectare. The species age makeup presented a different pattern, with nymphs predominant for Rhodnius neglectus and adults predominant for Psammolestes tertius. Also, many Rhodnius neglectus eggs were collected, which indicates a reproductive event in February 2003. Among the nests found in palm trees, that of the Phacellodomus ruber (Furnariidae) bird had the greatest abundance of Triatominae, occurring on 42% of palm trees. The relative abundance of Rhodnius neglectus and Psammolestes tertius was greater in rural areas which contained higher number of nests in palm trees and lesser density of palms per hectare. None of the 96 triatomines examined were infected by Trypanosoma cruzi or Trypanosoma rangeli, despite our finding of Rhodnius neglectus infection by those parasites in former studies.

Key-words: Rhodnius neglectus. Psammolestes tertius. Mauritia flexuosa. Federal District of Brazil.


 

 

O conhecimento disponível sobre a ocorrência de triatomíneos (Hemiptera: Reduviidae) no Distrito Federal (DF) foi resultado do trabalho de controle das infestações domiciliares e peridomiciliares, realizado pela Fundação Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, Brasil. A vigilância entomológica foi iniciada no início da década de 80, a partir da instalação de uma rede de postos de informações de triatomíneos (PITs) funcionando com auxílio da população e tendo como objetivos informar, divulgar e atender as denúncias, encaminhando os insetos para exames laboratoriais e realizando conseqüentes borrifações nas unidades domiciliares positivas1. Neste trabalho, espécies de triatomíneos como Panstrongylus megistus (Burmeister, 1835), Triatoma pseudomaculata (Corrêa e Espínola, 1964), Triatoma sordida (Stal, 1859) e Rhodnius neglectus (Lent, 1954) foram listadas37 38. Entretanto, a origem silvestre dessas populações e o potencial papel dessas espécies como vetores de Trypanosoma cruzi e/ou T. rangeli não foram estabelecidos nessa área.

Vários estudos têm salientado a importância de palmeiras como ecótopos naturais de triatomíneos, principalmente de espécies do gênero Rhodnius, importantes vetores da doença de Chagas nas Américas4 6 32 cuja distribuição em ambiente silvestre na América Latina coincide fortemente com a distribuição das palmeiras10 16. Grande controvérsia existe sobre a posição taxonômica de algumas espécies de Rhodnius, que pertencem ao complexo prolixusR. prolixus (Stal, 1879), R. robustus (Larrousse, 1927), R. nasutus (Stal, 1859) e R. neglectus, que ocorrem no Brasil e cuja determinação exige muitos cuidados2 34. Dujardin et al12 manifestam sua preocupação em relação a qual espécie de Rhodnius está invadindo as casas no Brasil a partir do ambiente silvestre.

Romaña et al32 sugerem que as palmeiras podem ser consideradas como indicadores ecológicos de áreas de risco da doença de Chagas, sendo úteis na identificação da presença de vetores e hospedeiros dos ciclos silvestres de transmissão do T. cruzi. Estudos em diferentes áreas do Brasil têm mostrado altas taxas de infestação de Triatominae, principalmente do gênero Rhodnius em palmeiras3 4 5 11 24 25 27 28 39 40. A ampla distribuição das palmeiras, sua variabilidade morfológica, que favorece a nidificação de fauna variada e triatomíneos, e seus variados usos pelo homem contribuem para valorizar a importância desse grupo no contexto da Tripanossomíase Americana. No DF, existem oito gêneros e dezesseis espécies de palmeiras, entre elas Mauritia flexuosa L.f. buritisAcrocomia aculeata (Jacq) Lodd. ex. Mart. macaúbas e Attalea phalerata Mart. ex Spreng. babaçus21 que poderiam abrigar triatomíneos silvestres.

Embora no DF não tenha sido documentada transmissão humana autóctone do T. cruzi em ambiente domiciliar ou silvestre, há um número estimado de soropositivos de 71.736 segundo inquérito sorológico38. Comparado com outros Estados este número é alto, mesmo não sendo uma área endêmica. Nesse sentido, a possibilidade de invasão e/ou domiciliação de espécies de triatomíneos presentes em ecótopos silvestres podem significar risco de instalação de ciclos peridomiciliares e domiciliares pelo T. cruzi na área. Este estudo propõe-se a determinar e avaliar a distribuição espacial de triatomíneos silvestres associados à palmeira M. flexuosa no DF, contribuindo para o melhor conhecimento sobre a ecologia e distribuição de triatomíneos no Brasil.

 

MATERIAL E MÉTODOS

O Distrito Federal está localizado entre os paralelos de 15º30′ e 16º03′ de latitude sul e os meridianos de 47º25’e 48º12’de longitude oeste, na região Centro-Oeste, ocupando o centro do Brasil e o centro-leste do Estado de Goiás em uma das áreas mais elevadas da região, o Planalto Central. As características ambientais da região estudada são: (i) 1000m de altitude média, (ii) precipitação média anual de 1545mm, (iii) temperatura media anual de 21,1ºC, (iv) marcada sazonalidade, com uma estação seca de maio a setembro (meses com precipitação menor que 100mm) e uma estação chuvosa durante o resto do ano.

A pesquisa de triatomíneos foi realizada em formações savânicas chamadas veredas, campos úmidos permanentes, colonizados por populações de palmeiras da espécie M. flexuosa e algumas espécies arbustivas30. Essa fitofisionomia tem importante papel na manutenção dos recursos hídricos e, atualmente, é considerada como Area de Proteção Permanente (APP) segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Não Renováveis (IBAMA).

As 150 palmeiras amostradas estavam localizadas em veredas com diferentes graus de perturbação ambiental, sendo classificadas em três paisagens, de acordo com a área de contato presente na periferia da vereda. Na paisagem silvestre a área de contato era a vegetação nativa (matas galerias e cerrado strictu sensu); na paisagem rural, plantações e pastos e na paisagem periurbana, conjuntos habitacionais. Foram escolhidas duas áreas em cada paisagem, totalizando seis diferentes áreas de amostragem no DF (Tabela 1). Em cada uma das áreas foi estimada a densidade das palmeiras pelo método proposto por Greig-Smith17, baseado nas distâncias das palmeiras mais próximas aos pontos de amostragem.

A amostragem de triatomíneos nas veredas foi feita utilizando transectos de 260m de comprimento, divididos em 13 pontos regularmente espaçados (20m), com exceção do transecto da vereda do IBGE, que foi dividido em seis pontos com espaçamento de 40m devido a menor densidade de palmeiras na área. As coletas foram feitas durante o mês de fevereiro de 2003 (estação chuvosa). As palmeiras mais próximas de cada ponto foram amostradas, totalizando vinte cinco palmeiras por transecto, resultando um mesmo esforço amostral por área de estudo. Os parâmetros morfométricos medidos das palmeiras foram altura da estipe, diâmetro da copa e número de folhas. As palmeiras foram escaladas e o material presente na copa (matéria orgânica, folhas e ninhos abandonados) foi coletado em sacos plásticos19 e processado no laboratório, onde os triatomíneos foram separados por sexo e estádio ninfal, contabilizados e identificados morfologicamente de acordo com chaves descritas20. As fezes dos triatomíneos coletados foram examinadas seguindo a técnica empregada para infecção pelo T. cruzi9 e exame de hemolinfa e glândulas salivares dos insetos para a pesquisa de T. rangeli8.

Os parâmetros usados na análise da distribuição espacial das populações de triatomíneos nas palmeiras foram a freqüência (número de palmeiras infestadas/número total de palmeiras amostradas na área) e a abundância (número médio de insetos por palmeira infestada na área e abundância relativa de insetos entre as áreas) de acordo com a paisagem (silvestre, rural e periurbana). Foram feitas também estimativas de densidades de triatomíneos nas palmeiras a partir do número médio de indivíduos por palmeira infestada, multiplicado pela densidade de palmeiras e pela percentagem de palmeiras infestadas nas áreas22.

As características das palmeiras foram relacionadas com abundância das populações de triatomíneos, por correlação de Spearman41 e testes qui-quadrado foram usados para comparar as freqüências de triatomíneos nas áreas estudadas e as freqüências de triatomíneos em palmeiras com e sem ninhos nas bainhas foliares.

 

RESULTADOS

Frequência de palmeiras infestadas por triatomíneos. Entre as 150 palmeiras amostradas, 28 (18,6%) estavam infestadas por R. neglectus e 14 (9,5%) por Psammolestes tertius. As freqüências dessas espécies foram superiores nas palmeiras com ninhos de aves e mamíferos (n=62) (45,1% e 22,5% respectivamente). Em nenhuma palmeira, foi observada a infestação exclusiva por P. tertius, ou seja, esta espécie só ocorreu em palmeiras que também estavam infestadas por R. neglectus. Por outro lado, infestações exclusivas por R. neglectus foram observadas em 50% das palmeiras infestadas.

Houve diferença significativa entre a freqüência de palmeiras infestadas em cada área por R. neglectus (X2=15,6; p<0,01; n=28) e P. tertius (X2=11,9; p<0,05; n=14). A vereda da Samambaia foi a única em que não foram detectadas palmeiras infestadas, nas outras os índices de infestação nas palmeiras variaram de 12 a 40% para R. neglectus e 4 a 24% para P. tertius(Tabela 2).

Abundância dos triatomíneos nas palmeiras, estrutura etária e infecção natural por tripanossomatídeos. Foram coletados 332 indivíduos sendo 189 (57%) R. neglectus e 143 (43%) P. tertius. Nenhum dos 96 triatomíneos examinados estava infectados por T. cruzi ou T. rangeli. Considerando o número total de indivíduos de ambas as espécies em todas as palmeiras infestadas, o número médio de insetos por palmeira foi de 11,9±11,6 sendo de 6,8±5,7 para R. neglectus e 10,2±7,1 para P. tertius. O número médio de insetos por palmeira em cada área variou de 3,0 a 9,8 para R. neglectus e de 3 a 16 para P. tertius e as estimativas de densidade de insetos nas áreas variaram de 57 a 378 indivíduos/ha e 19 a 460 indivíduos/ha respectivamente (Tabela 2), sendo maiores em Alphaville e Rajadinha (paisagem rural), seguido de Águas Emendadas e IBGE (paisagem silvestre). A correlação entre a abundância de R. neglectus e P. tertius nas cinco áreas infestadas foi significativa para p<0,05 (Rs=0,88; p=0,018) sugerindo que a abundância de ambas as espécies nas áreas é influenciada pelos mesmos fatores.

A composição etária das populações R. neglectus e P. tertius em M. flexuosa mostrou um padrão diferente. Nas populações de R. neglectus houve predomínio de ninfas (índice adulto/ninfa = 0,43), enquanto as populações de P. tertius foram mais representadas por adultos (índice adulto/ninfa = 1,26). Já o padrão de distribuição por sexo mostrou ser semelhante, com maior número de machos nas populações. Um número relevante de ovos e ninfas de estágios 1 e 2 de R. neglectus foi coletado, indicando um evento reprodutivo no mês de fevereiro. No caso de P. tertiusesse padrão ocorreu com menos intensidade.

Relações entre a infestação de triatomíneos, presença de ninhos, medidas das palmeiras e a paisagem. A diferença estatística na infestação em palmeiras com e sem ninhos foi muito significativa (X2=48,8; p<0,01) mostrando que a distribuição não é aleatória e fortemente influenciada pela presença de ninhos nas bainhas foliares das palmeiras. Houve uma correlação positiva entre o número de ninhos presentes nas bainhas foliares das palmeiras amostradas e o número total de R. neglectus (rs =0,66; p<0,01) e P. tertius (rs =0,62; p<0,01) coletados (Figura 1). O ninho do pássaro Furnariidae Phacellodomus ruber (graveteiro) ocorreu em 42% das palmeiras, apresentando as maiores abundâncias detriatomíneos. P. tertius só ocorreu em palmeiras que possuíam ninhos dessa espécie de ave, enquanto R. neglectus esteve associado a outros ninhos de aves (Gnorimopsar chopi – pássaro preto e Polyborus plancus – caracará) e mamíferos (Didelphis albiventris – gambá) nas bainhas foliares das palmeiras (Tabela 3).

Considerando as 150 palmeiras medidas, foi observado um número médio 11,5 ± 3,2 folhas (3 a 20 folhas), altura média da estipe de 7,2 ± 3.3m (0,5 a 17,0m) e diâmetro médio de 7,2 ± 1,5m (2 a 10,2m). As correlações entre as medidas das palmeiras e a abundância de R. neglectus(número de folhas: rs =-0,577; altura: rs = 0,125; diâmetro da copa: rs = 0,135) e P. tertius(número de folhas: rs = -0,372; altura: rs = 0,407; diâmetro da copa: rs = 0,394) não foram significativas para p<0,05.

A abundância relativa de R. neglectus e P. tertius variou de acordo com a paisagem, densidade de palmeiras por hectare e número total de ninhos nas bainhas foliares (Figura 2).

DISCUSSÃO

As espécies de triatomíneos encontradas foram R. neglectus e P. tertius cujas distribuições, freqüências e abundâncias na palmeira M. flexuosa foram descritas pela primeira vez no DF.

Em Uberaba (Minas Gerais), a freqüência de R. neglectus em 32 palmeiras da espécie M. flexuosaamostradas foi de 93,7% com densidade de 15,6 indivíduos por palmeira4, em Mambaí (Goiás) essa freqüência foi de 65,6% e densidade de 4,2 indivíduos por palmeira, pesquisando o mesmo número de palmeiras24 e em Frutal (Minas Gerais) a freqüência foi 69,2% e densidade de 9,5 indivíduos por palmeira, em treze palmeiras amostradas13. No presente trabalho, a freqüência variou de 12 a 40% e a densidade de 3,3 a 9,8 indivíduos por palmeira nas cinco áreas amostradas.

As variações de freqüência e abundância dos triatomíneos anteriormente citadas podem ser explicadas por vários fatores. No presente estudo, a amostragem foi padronizada para comparar as áreas e verificar fatores que influenciam a infestação. Porém, outros métodos de amostragem otimizando a busca dos triatomíneos (selecionando palmeiras com ninhos, por exemplo) podem ter sido feitos pelos citados autores. Outro fator metodológico poderia ser a maior sensibilidade do método de dissecção após derrubada da palmeira em relação ao método de coleta manual19, mas para confirmar isso haveria a necessidade de comparar ambos os métodos em um mesmo local. Além dos fatores metodológicos, outros devem ser levados em consideração: densidade de palmeiras e grau de perturbação da vereda, abundância de fonte alimentar ou de predadores de triatomíneos (aranhas, pseudo-escorpiões, hemipteros predadores), diferenças climáticas locais entre áreas, além de diferenças na reprodução e dispersão das populações devido a época de amostragem.

Neste estudo, a composição etária das populações de R. neglectus investigadas mostrou predomínio de ninfas (índice adulto/ninfa: 0,43), o que está de acordo com a estrutura etária geralmente observada em algumas populações de Rhodnius em palmeiras, com índice adulto ninfa inferior a 1, variando entre 0,36 e 0,9029. A coleta de ovos indica a existência de eventos reprodutivos no começo do ano (janeiro/fevereiro), durante a estação chuvosa. Resultados com populações de R. neglectus em palmeiras do gênero Acrocomia sugerem que há um grande crescimento das colônias nos meses mais quentes do ano (estação chuvosa) com alta produção de ovos, porém nos meses mais frios (estação seca) também foram capturados ovos, em menor quantidade11 indicando mais que um evento reprodutivo por ano.

Quanto a P. tertius, estudos anteriores indicaram freqüências superiores a 50% em ninhos de Phacellodomus rufifrons (João-Graveto) em árvores do Cerrado23 36. Neste trabalho, mostramos que P. tertius também forma colônias em ninhos de P. ruber (espécie de Furnariidae presente em Mauritia). A estrutura populacional de P. tertius, ao contrário de R. neglectus, mostrou um maior número de indivíduos adultos (índice adulto/ninfa: 1,23), sendo poucos os indivíduos de estágios iniciais coletados. Padrão semelhante foi obtido para populações de P. tertius coletadas em ninhos de P. rufifrons, com índices adulto/ninfa de 1,1023 e 1,4636. Isso poderia ser explicado pela sobrevida longa dos adultos, alta mortalidade das ninfas e/ou por diferentes períodos de reprodução e dispersão. Apesar da espécie já ter sido listada ocorrendo em Mauritia4 13, esses estudos não mostraram a associação entre P. tertius e P. ruber. A freqüência e abundância de P. tertius em M. flexuosa apresentaram valores menores, quando comparados com ninhos de P. rufifrons em árvores do Cerrado23 36, sendo a presença desta espécie de triatomíneo na palmeira M. flexuosa condicionada a presença do ninho de P. ruber. Isso sugere que os ninhos de P. ruberassociados à palmeira M. flexuosa, assim como os ninhos de P. rufifrons em árvores, seriam indicadores visuais da presença de populações de P. tertius no Cerrado.

A existência de ninhos nas bainhas foliares das palmeiras sugere ser uma das principais características que determinam uma maior abundância de R. neglectus e P. tertius em M. flexuosa. Os ninhos de P. ruber foram os que apresentaram maiores densidades de insetos. Essa espécie de pássaro é considerada sedentária, vivendo associada a campos úmidos, particularmente em palmeirais ocorrendo no Brasil (Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul), Bolívia, Paraguai e Argentina35. Os ninhos são construídos por gravetos entremeados de variados tamanhos (2 a 9cm) e possuem câmaras ou dormitórios no interior, formadas por fibras, folhas e outros materiais como papel e plástico, sendo este o local onde as populações de R. neglectus e P. tertius foram encontradas com maior freqüência. Normalmente, o mesmo local é usado por três ou mais anos consecutivos com uma nova câmara sendo sobreposta a antiga estrutura, fazendo com que o ninho alcance grandes dimensões7, permitindo a colonização dessas espécies de triatomíneos.

As diferentes densidades de triatomíneos encontradas em um ecótopo podem estar relacionadas com características estruturais do ecótopo que favoreçam a nidificação de vertebrados e consequentemente a colonização de triatomíneos. Entretanto, neste estudo, as características morfológicas de M. flexuosa (altura, diâmetro da copa e número de folhas) não foram correlacionadas com abundâncias de R. neglectus e P. tertius. Além disso, o número de ninhos encontrados nas palmeiras não obteve índices de correlação significativos com as características morfológicas das palmeiras, sugerindo que a nidificação das espécies de aves e mamíferos ocorre de forma aleatória.

Neste trabalho, observou-se que a freqüência R. neglectus e P. tertius foi maior em áreas rurais, que possuíram maior número de ninhos nas bainhas foliares e menor densidade de palmeiras por hectare. A relação entre infestação de triatomíneos e paisagem tem sido descrita em estudos envolvendo R. pallescens em palmeiras da espécie Attalea butyracea. No Panamá, em paisagens periurbanas, com menor densidade de palmeiras, há um maior número de insetos por palmeira, diferindo muito das áreas de floresta com alta densidade de palmeiras e baixa densidade de insetos por palmeira22. Na Colômbia, um padrão semelhante foi observado com R. pallescens e A. butyracea29. Segundo Romaña et al31, o manejo da paisagem pelo homem com desmatamento, pasto e urbanização poderia alterar as dinâmicas populacionais das palmeiras e, em conseqüência, as densidades de populações de Rhodnius, influenciando a ecoepidemiologia da tripanossomíase Americana.

A invasão de espécies do gênero Rhodnius em novos habitats, inclusive habitações humanas, poderia ocorrer devido à carência nutricional nos ecótopos naturais ou devido a estratégias de dispersão, sendo a presença de fontes luminosas artificiais e a sazonalidade26 fatores que poderiam influenciar esse processo. Desequilíbrios ecológicos decorrentes de desmatamento poderiam diminuir a oferta de fontes alimentares nesses ecótopos favorecendo a entrada dos vetores no ambiente domiciliar, principalmente à noite, atraídos pela luz.

Rhodnius neglectus é um bom exemplo de espécie silvestre que invade ocasionalmente ecótopos artificiais, formando colônias e podendo transmitir T. cruzi, diferentemente de P. tertius, espécie estritamente silvestre3 6. A presença de R. neglectus nas habitações humanas e anexos vem sendo assinalada há muito tempo em São Paulo, Goiás e Minas Gerais, onde podem formar pequenas colônias, com taxa média de infecção de 3,4%3. Experimentalmente, a capacidade de dispersão e domiciliação de R. neglectus foi demonstrada com a colonização espontânea de galinheiros artificiais no perimomicílio, sendo a proximidade das palmeiras um fator importante para ocorrer essa dispersão13 14. Em Goiás, durante 1975 e 1982, 41% dos municípios reportaram a infestação de R. neglectus no domicílio, sendo que 43% das capturas foram feitas no intradomicílio15. Nos distritos de Formosa, Jataí, Morrinhos e Ceres, em Goiás, R. neglectus foi a segunda espécie com maior incidência no ambiente domiciliar33. No Paraná, esta espécie foi capturada em casas abandonadas na área rural18. Os levantamentos entomológicos feitos pela FUNASA/Secretaria de Vigilância Ambiental do D.F., mostram poucos R. neglectus coletados no ambiente domiciliar nos últimos anos. Apesar deste estudo não ter mostrado a infecção de R. neglectus por T. cruzi ou T. rangeli, a transmissão enzoótica desses parasitas tem sido evidenciada no DF envolvendo R. neglectus19. Portanto, as palmeiras da espécie M. flexuosa poderiam ser potenciais indicadores ecológicos da presença de focos de transmissão de T. cruzi no DF, porém o risco de infecção humana deve ser cuidadosamente mensurado e avaliado.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a colaboração do Fábio e sua família no trabalho de campo e aos colegas Liléia Diotaiuti, Guy Mejìa e Michael Miles por revisar versões preliminares do trabalho.

 

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 Endereço para correspondência
Prof. César Augusto Cuba-Cuba
LPM/BV/AP/FM/UnB, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte
70910-900 Brasilia, DF, Brasil
Fax: 55 61 273.3907
e-mail: cuba@unb.br

Recebido para publicação em 9/1/2004
Aceito em 19/4/2004
Pesquisa parcialmente financiada pelo CNPq e FINATEC