Home » Volumes » Volume 35 July/August 2002 » Inquérito soroepidemiológico para infecções por fungos causadores de micoses sistêmicas na Reserva Indígena Xacriabá, Estado de Minas Gerais

Inquérito soroepidemiológico para infecções por fungos causadores de micoses sistêmicas na Reserva Indígena Xacriabá, Estado de Minas Gerais

Roberto Martinez1, Lúcia Helena Vitali1, José Humberto da Silva Henriques2, Alcyone Artioli Machado1, André Albernaz2 e Andréa Alves Lima2

1.Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP. 2. Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG.

DOI: 10.1590/S0037-86822002000400011


Resumo A Reserva Indígena Xacriabá situa-se no norte do Estado de Minas Gerais, próxima do município de Manga e do vale do Rio São Francisco. A população índia é miscigenada com brancos e negros e exerce atividades agrícolas e pecuária. Amostras de sangue foram coletadas de 180 habitantes da Reserva (85 homens e 95 mulheres), com 15 a 84 anos de idade, testando-se o soro pelo método da contraimunoeletroforese com antígenos de Paracoccidioides brasiliensisHistoplasma capsulatumCryptococcus neoformans e Candida albicans. Verificou-se soros reagentes em, respectivamente, 5%, 3,9%, 7,2% e 6,7% do total de amostras. Os indivíduos reativos com antígenos de P. brasiliensis e H. capsulatum eram predominantemente mulheres e tinham idade menor e títulos médios mais elevados de anticorpos do que os reativos com outros antígenos.Os resultados são sugestivos da ocorrência de paracoccidiodomicose-infecção e de histoplasmose-infecção, nas primeiras décadas de vida dos habitantes, na área da Reserva Indígena Xacriabá.
Palavras-chaves:
 Índios. Soroepidemiologia. Paracoccidioidomicose. Histoplasmose. Criptococose.

Abstract Xacriabá Indian Reserve is situated in the north of Minas Gerais State, Brazil, near the municipality of Manga and São Francisco River. The Indian population is miscegenated with caucasian and negroid people and have farming activities. Blood samples were collected from 180 inhabitants of the reserve (85 men and 95 women), 15 to 84 years old. Serum antibodies against antigens of Paracoccidioides brasiliensis, Histoplasma capsulatum, Cryptococcus neoformans, and Candida albicans were tested for by counterimmunoelectrophoresis method. Seropositivity was verified in 5%, 3.9%, 4.2%, and 6.7%, respectively of the 180 samples. Those seropositive for antigens of P. brasiliensis and H. capsulatum were predominantly women and had lower age and more elevated mean titers of antibodies than individuals whose sera reacted with antigens of C. neoformans and C. albicans. The results suggest the occurrence of paracoccidioidomycosis-infection and histoplasmosis-infection in the Xacriabá Indian Reserve, particularly in the first decades of life of the inhabitants.
Key-words
: Indians. Seroepidemiology. Paracoccidioidomycosis. Histoplasmosis. Cryptococcosis.

A ocorrência de infecção por fungos causadores de micoses sistêmicas foi demonstrada nas diversas macro-regiões brasileiras por meio de inquéritos populacionais com intradermorreação, aplicando-se principalmente antígenos de Paracoccidioides brasiliensis13 17 19 e de Histoplasma capsulatum1 6 13. O isolamento destes fungos e de Cryptococcus neoformans de amostras ambientais8 16 20 e de animais14 16 18 tem contribuído para definir micro-regiões onde se passa a exposição e a infecção humana. No entanto, em razão do pequeno número de isolamentos obtidos, permanecem desconhecidos, em grandes extensões do território brasileiro, os locais nos quais os fungos fazem o ciclo de vida saprofítica e onde poderiam infectar o homem.

Estudos sobre soroprevalência de micoses sistêmicas são raramente realizados, mas também podem revelar áreas de transmissão de fungos, detectando casos de doença e os indivíduos infectados assintomáticos que desenvolvem e mantém anticorpos em títulos mensuráveis. Em regiões endêmicas de histoplasmose, 10% dos indivíduos sadios tem baixos títulos de anticorpos anti-H. capsulatum5. Inquéritos sorológicos aplicados a populações relativamente fixas possibilitam interpretar a soropositividade como indicativa de transmissão da infecção no local de nascimento e de moradia do indivíduo. Esta condição é preenchida pelos habitantes da Reserva Indígena Xacriabá, em Minas Gerais. Por viverem em território demarcado, efetuou-se a pesquisa de anticorpos antifúngicos em parte dessa população, buscando evidências da presença de P. brasiliensisHcapsulatum e de C. neoformans na região. Comparativamente, investigou-se, também, a soroprevalência de anticorpos anti-Candida albicans.

MATERIAL E MÉTODOS

A Reserva Indígena Xacriabá situa-se no extremo norte de Minas Gerais, limitando-se com os municípios de Manga, Itacarambi e São João das Missões e distando aproximadamente 40km do Rio São Francisco (Figura 1). É separada do município de Manga pelo Rio Itacarambi e pelo lago formado com o represamento deste último. O território Xacriabá tem clima semi-árido e é coberto por vegetação de pequeno porte, mas existem zonas de mata mais densa próximo de fontes de água. Conta com 22 aldeias, sendo habitado por aproximadamente 6.700 índios com alto grau de miscigenação com brancos e negros. Cada família tem sua lavoura, onde são cultivados mandioca, milho e feijão, praticando-se também a criação de gado bovino e de galináceos.

Em 1999, com permissão da Fundação Nacional do Índio e consentimento individual, coletou-se aleatoriamente sangue de 180 moradores da Reserva, cafuzos em sua grande maioria, com 15 a 84 anos de idade (mediana igual a 31 anos), sendo 85 homens e 95 mulheres. A avaliação médica desta amostra populacional, complementada com exames sorológicos e copro-parasitológico, mostrou 3 casos de leishmaniose e 2 de esquistossomose, além de tabagismo (22%), consumo de bebidas alcoólicas (23%), hipertensão arterial sistêmica (18%), doença de Chagas (13%), ancilostomíase e outros problemas menos frequentes.

Na pesquisa de anticorpos antifúngicos foi utilizado o método sorológico de contraimunoeletroforese10. A reação foi executada em placas de vidro recobertas com agarose tipo II (SigmaR) a 1% diluída em tampão barbiturato de sódio (MerckR), pH 8,2. Soros e antígenos foram colocados, respectivamente, em uma de duas fileiras paralelas de poços perfurados no gel de agarose e submetidos à corrente elétrica de 30mAmp durante 60 minutos, em cuba contendo o mesmo tampão. A seguir as placas foram lavadas com solução aquosa de NaCl 0,9% e, após secas, coradas com azul brilhante (SigmaR). Soros reagentes, que originaram linhas de precipitado com um ou mais antígenos, foram diluídos em solução aquosa de NaCl 0,9% e retestados, considerando-se o título do soro como a maior diluição ainda originando precipitado no gel de agarose. Os antígenos fúngicos foram preparados da seguinte maneira: a) Pbrasiliensis – extrato bruto obtido por sonicação de células leveduriformes de 6 amostras do fungo; b) H. capsulatum – mistura de histoplasmina obtida pelo cultivo de 3 amostras em meio líquido, em temperatura ambiente; c) C. neoformans – extrato bruto de leveduras de 4 amostras cultivadas em Sabouraud, rompidas por ultrassom; d) C. albicans – extrato bruto de células de 6 amostras cultivadas em meio Sabouraud e submetidas à sonicação.

O teste do qui-quadrado foi usado nas análises estatísticas.

RESULTADOS

Das 180 amostras de soro testadas, 34 foram reagentes, das quais 27 com um e 7 com dois antígenos fúngicos. A Tabela 1 mostra a reatividade dos soros conforme o antígeno: P. brasiliensis – 5%; H. capsulatum – 3,9%; Cneoformans – 7,2%; C. albicans – 6,7%. Os títulos sorológicos distribuíram-se de 1/1 (reagentes somente com soro não diluído) a 1/16. Títulos superiores a 1/4 foram mais freqüentes com os dois primeiros antígenos do que com os dois últimos (25% x 4%, p < 0,05). Cinco soros apresentaram duas linhas de precipitado, sendo 3 com P. brasiliensis, 1 com H. capsulatum e 1 com Cneoformans.

Idade até 30 anos foi observada em 71% dos sororreagentes com antígenos de P. brasiliensis e/ou H. capsulatum versus 29% dos reagentes com antígenos de C. neoformans e /ou C. albicans (p < 0,05). Houve maior proporção de mulheres entre os sororreagentes para Pbrasiliensis (78%) e H. capsulatum (86%) do que na amostra populacional estudada (53%). Considerando conjuntamente os sororreativos a um (n=12) ou ambos destes antígenos (n=2), verificou-se maior prevalência de positividade entre as mulheres (11/95) do que entre os homens (3/85) (p < 0,05).

DISCUSSÃO

Os anticorpos detectados pela reação de contraimunoeletroforese são sugestivos da ocorrência de infecções por fungos causadores de micoses sistêmicas na Reserva Xacriabá. A baixa mobilidade dos seus moradores leva à suposição de que tenham sido infectados na região. O território da Reserva contém resquícios de mata e algumas fontes de água, praticando-se nele o cultivo agrícola e a criação de animais. Aparentemente, reúne as condições mínimas para permitir o ciclo de vida saprofítica de PbrasiliensisH. capsulatum e C. neoformans. Os dois primeiros já foram isolados do solo do Estado de Minas Gerais, embora em outras áreas1 8. A moradia em pequenas aldeias no interior da Reserva possibilita a exposição continuada a propágulos fúngicos contidos em partículas de solo, vegetais e dejetos de animais dispersos no ar, especialmente quando o solo é revolvido para a agricultura9 19.

Os títulos medianamente elevados de anticorpos anti-P. brasiliensis e anti – H. capsulatumapresentados por alguns indivíduos e a reatividade com mais de uma fração do mesmo antígeno sugerem que, nestes casos, a infecção tenha acontecido em passado relativamente recente. Ao serem examinados, os moradores não apresentaram manifestações clínicas de micoses sistêmicas. Os soros daqueles com esquistossomose ou leishmaniose não reagiram com os antígenos fúngicos, afastando a possibilidade de reações inespecíficas. O método da contraimunoeletroforese tem grande especificidade, interpretando-se como indício de infecção a reatividade de soros de pessoais normais aos antígenos utilizados.

Deve ser salientada a baixa faixa etária dos sororreagentes com antígenos de P. brasiliensis e Hcapsulatum em comparação com os casos reativos com Calbicans e C. neoformans e também com o total da amostra populacional. Os habitantes com títulos sorológicos superiores a 1/4 tinham entre 16 e 22 anos de idade. Esses dados mostram que na Reserva Xacriabá as infecções pelos dois primeiros fungos ocorrem primordialmente nas primeiras décadas da vida, fato também observado em estudos com intradermorreação9 13 17.

A maior prevalência de mulheres sororreagentes para P. brasiliensis H. capsulatum é inesperada, pois tem sido constatada igualdade de índices de infecção nos dois sexos5 19. Poderia significar maior e mais duradoura resposta imunológica humoral do sexo feminino frente a estas infecções. Presume-se também que as mulheres sofram maior exposição aos fungos durante o trabalho agrícola, do qual participam muito ativamente, fato este observado em várias reservas indígenas.

A doença por C. neoformans, variedade gattii, foi observada em crianças e adolescentes do interior do Estado do Pará4. Porém, o fungo, em especial a variedade neoformans, tem sido isolado em zona urbana16 e demonstrou-se anticorpos anti-glucuronoxilomanana em fração de população sadia11. A interpretação da sororreatividade para criptococo, e também de candida, é mais complexa, pois estas leveduras são menos invasivas em imunocompetentes, ainda que a exposição seja precoce e continuada ao longo da vida, podendo resultar em colonização de superfície mucosa.

Índios são susceptíveis a fungos causadores de micoses sistêmicas. Casos de paracoccidioidomicose foram observados em membros da tribo Suruí, que vivem no Estado de Rondônia7. A lobomicose foi diagnosticada em vários índios da tribo Caiapó, do Estado de Mato Grosso2. Pesquisa de anticorpos séricos por imunodifusão, em habitantes do Alto Amazonas, não encontrou sororreagentes à histoplasmina entre os Ticunas12, o mesmo sucedendo com paracoccidioidina e histoplasmina em população indígena-caucasiana do município de Coari13. Inversamente, inquéritos com intradermorreação em índios do Brasil Central6 15 e da Amazônia3revelaram elevados índices de positividade à histoplasmina. Reatividade cutânea à paracoccidioidina foi observada em índios3 e em mestiços13 da região Norte do Brasil. É provável que a infecção fúngica de indígenas esteja mais relacionada à moradia em ambiente rural-florestal do que com susceptibilidade racial. A alta positividade da reação cutânea à paracoccidioidina na tribo Suruí, que atingiu 44%, sendo significativamente superior à de tribos vizinhas, foi atribuída a atividades agrícolas praticadas pelos primeiros3.

O estudo soro-epidemiológico realizado trouxe evidências de que a região da Reserva Indígena Xacriabá é uma área endêmica de paracoccidioidomicose e de histoplasmose e que a infecção de seus habitantes acontece nas primeiras décadas de vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Araújo FG. Primeiro isolamento de Histoplasma capsulatum do solo em Minas Gerais. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 12:185-191, 1970.         [ Links ]

2. Baruzzi RG, D’Andretta C, Carvalhal S, Ramos OL, Pontes PL. Ocorrência de blastomicose queloideana entre índios Caiabi. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 9:135-142, 1967.         [ Links ]

3. Coimbra Jr CEA, Wanke B, Santos RV, do Valle ACF, Costa RLB, Zancopé-Oliveira RM. Paracoccidioidin and histoplasmin sensitivity in Tupí-Mondé Amerindian populations from Brazilian Amazonia. Annals of Tropical Medicine and Parasitology 88:197-207,1994.         [ Links ]

4. Corrêa MPSC, Oliveira EC, Duarte RRBS, Pardal PPO, Oliveira FM, Severo LC. Criptococose em crianças no Estado do Pará, Brasil. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 32:505-508, 1999.         [ Links ]

5. Deepe Jr GS. Histoplasma capsulatumIn: Mandell GL, Bennett JE, Dolin R (eds) Principles and practice of infectious diseases, 5th edition, Churchill Livingstone, Philadelphia, p.2718-2732, 2000.        [ Links ]

6. Dourado JG, Lima AO. Incidência de sensibilização à histoplasmina entre índios do Brasil Central. Hospital (Rio) 50:171-186, 1956.         [ Links ]

7. Forjaz MHH, Fischman O, Camargo ZP, Vieira Filho JPB, Colombo AL. Paracoccidioidomicose em índios brasileiros da tribo Suruí: estudo clínico-laboratorial de 2 casos. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 32:571-575, 1999.         [ Links ]

8. Franco M, Bagagli E, Scapolio S, Lacaz CS. A critical analysis of isolation of Paracoccidioides brasiliensis from soil. Medical Mycology 38:185-191, 2000.         [ Links ]

9. Goodwin RA, Loyd JE, DesPrez RM. Histoplasmosis in normal hosts. Medicine 60:231-266, 1981.        [ Links ]

10. Greenwood BM, Wittle HC, Rajkovic DO. Countercurrent immunoelectrophoresis in the diagnosis of meningococcal infections. Lancet 2:519-521, 1971.         [ Links ]

11. Houpt DC, Pfrommer GST, Young BJ, Larson TA, Kozel TR. Occurrences, immunoglobulin classes and biological activities of antibodies in normal human serum that are reactive with Cryptococcus neoformans glucuronoxylomannan. Infection and Immunity 62:2857-2864, 1994.        [ Links ]

12. Mok WY, Ayres CHL, McMillen S. Levantamento sorológico de quatro micoses profundas no Estado do Amazonas, Brasil. Acta Amazônica 9:75-78, 1979.         [ Links ]

13. Mok WY, Fava Netto C. Paracoccidioidin and histoplasmin sensitivity in Coari (State of Amazonas), Brazil. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene 27:808-814, 1978.        [ Links ]

14. Naiff RD, Mok WY, Naiff MF. Distribution of Histoplasma capsulatum in Amazonian wild life. Mycopathologia 89:165-168, 1985.         [ Links ]

15. Neel JV, Andrade AHP, Brown GE, Eveland WE, Goobar J, Sodeman Jr WA, Stollerman GH, Weinstein ED, Wheeler AH. Further studies of the Xavante Indians. IX. Immunologic status with respect to various diseases and organisms. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene 17:488-498, 1968.         [ Links ]

16. Passoni LFC, Wanke B, Nishikawa MM, Lazéra MS. Cryptococcus neoformans isolated from human dwellings in Rio de Janeiro, Brazil: an analysis of the domestic environment of AIDS patients with and without cryptococcosis. Medical Mycology 36:305-312, 1998.         [ Links ]

17. Silva-Vergara ML, Martinez R. Inquérito epidemiológico com paracoccidioidina e histoplasmina em área agrícola de café em Ibiá, Minas Gerais, Brasil. Revista Iberoamericana de Micologia 15:294-297, 1998.         [ Links ]

18. Silva-Vergara ML, Martinez R, Camargo ZP, Malta MHB, Maffei CML, Chadu JB. Isolation of Paracoccidioides brasiliensis from armadillos (Dasypus novemcinctus) in an area where the fungus was recently isolated from soil. Medical Mycology 38:193-199, 2000.         [ Links ]

19. Wanke B, Londero AT. Epidemiology and paracoccidioidomycosis infection. In: Franco M, Lacaz CS, Restrepo-Moreno A, Del Negro G (eds) Paracoccidioidomycosis, CRC Press, Boca Raton, p. 109-120, 1994.         [ Links ]

20. Zancopé-Oliveira RM, Wanke B. Distribuição das fontes de infecção do Histoplasma capsulatumvar. capsulatum em Rio da Prata – Município do Rio de Janeiro (RJ). Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo 20:243-250, 1987.         [ Links ]