Home » Volumes » Volume 31 July/August 1998 » Marcadores sorológicos das hepatites B e C em residentes de área endêmica da esquistossomose mansônica

Marcadores sorológicos das hepatites B e C em residentes de área endêmica da esquistossomose mansônica

José Tavares-Neto

Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia

DOI: 10.1590/S0037-86821998000400015


A associação da infecção pelos vírus da hepatite B (VHB), ou da hepatite C (VHC), e a forma hepatosplênica (HE) da esquistossomose mansônica (EM) torna a evolução da doença concomitante com pior prognóstico, devido ao agravamento da hepatopatia. Contudo, mais recentemente, alguns autores passaram a rejeitar a hipótese da maior susceptibilidade dos esquistossomóticos HE aos VHB e VHC e justificaram que a associação foi descrita em pacientes hospitalizados ou acompanhados em serviços de saúde e, conseqüentemente, mais expostos à transmissão destes vírus, durante os procedimentos diagnósticos e terapêuticos. Poucas investigações estudaram a associação dos vírus B e C em áreas endêmicas da EM, especialmente no Brasil. Os objetivos foram: a) verificar a ocorrência de associação da EM com os marcadores da VHB e VHC; b) estabelecer se há associação entre a ocorrência de regressão clínica da forma HE da EM e a ausência de marcadores sorológicos dos VHB e VHC e c) estudar as características clínico-laboratoriais de portadores da EM e marcadores de VHB e VHC, através de estudo longitudinal (coorte) estudo transversal e de relato de casos. O estudo longitudinal da EM, abrangendo os membros das famílias residentes na área de transmissão de Catolândia, foi iniciado em 1975-1976, com seguimento periódico até 1996, através de exames clínicos e parasitológicos de fezes (Kato-Katz) e de medidas terapêuticas (oxamniquine e/ou praziquantel), saneamento ambiental (vasos sanitários nos domicílios e serviço público de água) e programas de educação e informação. O estudo transversal foi realizado em julho-agosto de 1990, através do 8º exame clínico, 16º exame parasitológico de fezes (Kato-Katz) e coleta de amostras sangüíneas dos moradores para a pesquisa de marcadores do VHB (ELISA: AgHBs, anti-HBs, anti-HBc) e VHC (ELISA-II e RIBA-II: anti-VHC). No período de 1991 a 1996, no mês de julho de cada ano, a população de Catolândia foi submetida a exames clínicos (9º ao 14º exame) e, como nos exames anteriores, foi observado as características do fígado e do baço. Os portadores de marcadores dos VHB e VHC foram estudados em 1994 e 1996, respectivamente, através das provas de avaliação da função hepática. Em novembro/1975 residiam na área 571 moradores e até janeiro/1990 outros 1.670 moradores foram registrados. No 6° censo de janeiro/1990 residiam na área de estudo (sede do município e fazendas) 1.432 pessoas e no final do estudo (julho/1996) 1.273 habitantes (88,9%) foram incluídos (inclusive 94 moradores da Fazenda Tiririca sem transmissão da EM). O anticorpo anti-VHC foi pesquisado (ELISA-II) em 1.228 dos moradores, com os seguintes resultados: seis (0,5%) positivos, oito (0,6%) inconclusivos e 1.214 (98,9%) negativos. Todavia, somente em um (0,08%) soro ELISA-positivo, os anticorpos foram confirmados pelo RIBA-II e dois outros apresentaram RIBA-II indeterminado ¾ estes três casos, durante o período de seguimento, apresentaram a forma hepatointestinal (HI) da EM, e, em 1996, as provas de avaliação da função hepática foram normais. O diagnóstico sorológico da infecção pelo VHB foi realizado nos 1.273 moradores com a seguinte distribuição: 50 (3,9%) infecção antiga/curada; 13 (1,0%) vacinados contra o vírus B; nove (0,7%) portadores do vírus B; 1155 (90,7%) susceptíveis à infecção e 46 (3,6%) com anti-HBc-positivo e AgHBs e anti-HBs negativos, classificados como falso-positivos, portador de VHB ou portador de cepa mutante. Oito dos nove casos portadores de AgHBs apresentaram a forma HI da EM; dois deles, também alcoolistas, tinham aminotransferases com valores alterados. O nono caso de AgHBs-positivo tinha a forma HE da EM desde 1981 e hepatite crônica ativa, diagnosticada em 1982. As freqüências de cada diagnóstico sorológico para o VHB foram semelhantes (p > 0,44) entre os moradores das fazendas (inclusive os da fazenda Tiririca) e da sede do município. Todavia, os moradores susceptíveis à infecção pelo VHB tiveram idade significativamente inferior (p < 0,0001). Como os moradores com idade inferior a oito anos (n = 264) apresentaram a forma HI da EM ou não tinham a infecção esquistossomótica, todos foram excluídos das análises subseqüentes. Deste modo, a distribuição do diagnóstico sorológico da infecção pelo VHB foi semelhante (p ³ 0,11) entre os portadores da forma HI leve-moderada (n = 901), HI-III avançada (n = 66), HE (n = 36) e esplenectomizados (n = 6). No período de 1976 a 1996 a forma HE foi diagnosticada em 87 casos, residentes em Catolândia no período de 1990 a 1996, e após dois ou mais tratamentos específicos, 72 casos tiveram regressão clínica da forma HE e 15 casos não apresentaram regressão ¾ porém estes dois grupos apresentaram diagnósticos sorológicos para a infecção pelo VHB com freqüências semelhantes (p ³ 0,17). Quando o diagnóstico sorológico foi reclassificado (excluídos os vacinados contra o VHB) em dois grupos (sem contato anterior ou contato anterior ao VHB) a distribuição das formas clínicas foi também semelhante (p ³ 0,64), mesmo quando o diagnóstico final dos hepatosplênicos (HE) considerou se houve regressão ou não. Entre os 571 moradores de Catolândia na época do 1º censo (novembro/1975), 214 pessoas continuaram residindo na área de transmissão até julho-1996. Neste grupo, a distribuição dos diagnósticos sorológicos do VHB foi semelhante entre as formas clínicas diagnosticadas em 1990, bem como a distribuição do diagnóstico final da EM em 1996. Quando os diagnósticos sorológicos destes moradores de 1975-1976 (n = 214) foram comparados com a sorologia de 192 moradores (todos com 20 ou mais anos de idade e incluídos no estudo após 1985, quando nenhum caso-novo da forma HE foi diagnosticado), sendo as freqüências de infecção pelo VHB (presente e antiga) semelhantes (p > 0,60), respectivamente: 16,8% (36/214) e 15,1% (29/192). Os resultados observados rejeitaram as hipóteses de associação entre a EM e o VHB em área endêmica da EM da Bahia, Brasil (município de Catolândia), ou seja, a distribuição dos marcadores do VHB foi semelhante entre os portadores de formas clínicas leves e graves da EM. Também a presença de AgHBs ou de infecção antiga/curada pelo VHB não se associou à não-regressão da forma HE. Não se observou associação entre o VHC e a forma HE da EM. Em conclusão, nos moradores de uma área endêmica da esquistossomose mansônica, não foi observada a associação com os vírus das hepatites B e C e a esquistossomose mansônica ¾ notadamente entre os portadores da forma hepatosplênica.

Hepatitis B and C serological markers in residents of a schistosomiasis mansoni endemic area

The association of hepatitis B (HBV), or hepatitis C (HCV) viruses, and the hepatosplenic form (HS) of schistosomiasis mansoni (SM) is claimed to result in concomitant evolution of both pathology with a worse prognosis, due to the aggravation of hepatopathy. However, recently, some authors have begun to reject the hypothesis of a higher susceptibility of HS schistosomatic patients to HBV and HCV. The arguments are based on the fact that the association had been observed in hospitalized patients, as well as on those under health care services. Exposition to viral transmission during the diagnostic and therapeutic procedures is suggested as the source for the association. On the other hand, the association of B and C viruses in SM endemic areas had been scarcelly studied, especially in Brazil. Search for an association between the occurrence of clinical regression of HS form of SM and the absence of serological markers for HBV and HCV; verify the occurrence of association of SM with HBV and HCV markers, and study the clinical-laboratorial characteristics of carriers of SM, and of HBV and HCV markers, by longitudinal (cohort) and transversal studies and individual reports. The SM longitudinal studies, involving family members residing in the transmission area of Catolândia, was begun in 1975-1976, with periodic follow-up until 1996, plus clinical and parasitological feces (Kato-Katz) exams, and therapeutic measures (oxamniquine and/or praziquantel), environmental sanitation (residential toilets and public water supply), as well as informative and educational services. The transversal study took place in July-August 1990, through the 8th clinical exam, 16th parasitological feces (Kato-Katz) exam and collection of serum samples from residents for testing for HBV (ELISA: HBsAg, anti-HBs, anti-HBc) and HCV (ELISA-II and RIBA-II: anti-HCV) markers. Every month of July, from 1991-1996, the population of Catolândia underwent clinical examination (from 9th to 14th exams) and as in previous exams, the liver and the spleen characteristics were observed. The carriers of markers for HBV and HCV were studied in 1994 and 1996, respectively, through the hepatic function evaluation exams. In November 1975 there were 571 residents in the transmission area and, by January/1990, an additional 1,670 inhabitants were registered. On the 6thcensus (January/1990), 1,432 people were residing in the area under study (municipality and farms) and by the end of the study (July/1996) 1,273 dwellers (88.9%) were included (here we have included 94 residents of Tiririca Farm, which has no SM transmission). The anti-HCV antibody was assayed (ELISA-II) in 1,228 residents, with the following results: six (0.5%) positive, eight (0.6%) inconclusive and 1,214 (98.9%) negative. However, only in one (0.08%) ELISA positive serum antibodies were confirmed by RIBA-II and two other exams by RIBA-II were indeterminate. These three cases, during the follow-up period, presented the hepatointestinal (HI) form of SM, and, in 1996, their hepatic function evaluation exams were normal. The serologic diagnosis of infection by HBV was carried out on 1,273 residents with the following distribution: 50 (3.9%) cured; 13 (1.0%) vaccinated against B virus; 9 (0.7%) B virus carriers; 1,155 (90.7%) susceptible to infection and 46 (3.6%) with anti-HBc-positive and HBsAg and anti-HBs negative, classified as false positive, which were either carriers for HBV or carriers for the mutant variety. Eight of the nine carrier cases of HBsAg presented a HI form of SM; two of which were also alcoholic and had altered aminotransferase levels. The ninth case of AgHBs-positive had an HS form of SM since 1981 and an active chronic hepatitis, diagnosed in 1982. The frequencies of each serologic diagnosis for HBV were similar (p > 0.44) between farm dwellers (including those from Tiririca Farm) and the urban residents. However, those residents susceptible to HBV had younger age (p < 0.0001). Residents, under the age of eight (n = 264), having the HI form of SM, were excluded from subsequent analysis. Thus, the distribution of serologic diagnosis for infection by HBV was similar (p ³ 0.11) among the four groups: (i) carriers of the light-moderate form of HI (n = 901), (ii) of advanced form of HI-III (n = 66), (iii) of HS form(n = 36) and (iv) to those who were splenectomized (n = 6). From 1976 to 1996, the HS form was diagnosed in 187 cases, being 87 from 1990 to 1996 and residents of Catolândia. After two or more specific treatments, 72 cases underwent clinical regression of the HS form and 15 cases did not ¾ although, with similar frequency, both groups showed serological diagnosis for HBV infection (p ³ 0.17). When the serological diagnosis was reclassified (excluding those vaccinated against HBV) in two groups (with and without previous contact) the distribution of clinical forms were also similar (p > 0.64), even when the final diagnosis of regression of hepatosplenic patients (HS) considered the question of regression. Out of 571 Catolândia’s residents at the time of the first census (November-1975), 214 continued to reside in the transmission area until July, 1996. In this group, the distribution of serologic diagnosis for HBV was similar among the clinical forms diagnosed in 1990, as well as among the final diagnosis of SM, made in 1996. The serologic diagnosis of those 214 residents (1975-1996) were compared to the serology results from 192 residents (all over 20 years of age and who had been included in the study after 1985, when no further cases of HS form were diagnosed). The frequency of infections by HBV (both present and past) were similar (p > 0.60), respectively: 16.8% (36/214) and 15.1% (29/192). The observed results reject the hypothesis of association between SM and HBV in endemic areas of Bahia, Brazil (municipal district of Catolândia). In another words, the distribution of HBV markers showed to be similar between carriers of both light and severe clinical forms of SM. Also, the presence of AgHBs or of cured HBV infections was not associated with non-regression of the HS form. No association between HCV and the HS form of SM was observed. In conclusion, in the residents of a schistosomiasis mansoni endemic area, the claimed association of hepatitis B or C viruses and schistosomiasis mansoni was not observed ¾ notedly amongst carriers of the hepatosplenic form.

José Tavares-Neto

Tese apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia para obtenção do Título de Livre-Docente.

Salvador, BA, Brasil, 1997
Recebido para publicação em 17/02/98.